segunda-feira, 18 de outubro de 2010

ROSS PYNN


Chegaste tarde - dizia ele - O que vale é que é pouca coisa.
Pouca coisa, dizia ele: uma resma de material: artigos, notícias, horóscopos, o consultório sentimental, funerais, a sessão solene, os crimes na cidade. Era trabalho para quase uma semana e eu tinha que o despachar todo num dia.
Estávamos na antecâmara da morte decretada do "Diário Ilustrado". A rapaziada tinha abandonado o barco, e com razão. Ele ficou. Comprometeu-se a fazer o jornal até ao fim: um jornal que ninguém lia, feito de remendos, cheio de buracos que ele preenchia com textos esotéricos, ou vulgares, ou invenções, ou fotografias.
Eu disse:
- Vou-me embora, Ross. Quem mandou fechar o jornal, que mande o material para a tipografia.
Ele disse:
- Vai-me ser difícil fazer tudo sozinho.
Fiquei. Ficámos na solidão de uma grande sala, cheia de secretárias abandonadas; dividimos o trabalho: um caderno para ti, outro para mim. Trabalhámos muito depressa, com ele trabalhei sempre muito depressa. Depressa, e muitas vezes mal. Às vezes bem. A certa altura as teclas da sua máquina de escrever paravam de saltar, de espetar saom nas paredes. Ele diz ia: vamos comer qualquer coisa.
Tínhamos alguns gostos comuns: o Chandler, certos sub-produtos literários fascinantes, a B.D., a pescada cozida, os gangsters do cinema, as notícias com ar amalucado. Ele às vezes sorria, gordo, simples. Sabia sorrir.
Sempre o vi vagamente solto, um pouco disfarçado, comprometido apenas com o seu trabalho e as suas obsessões. E a urgência disso. Como se as 24 horas de cada dia fossem um erro da natureza. Alguém se enganava na medição do tempo e ele, para acertar com o que procurava, fugia para a frente.
às vezes dizia coisas assim:
- Comecei esta manhã um romance policial. Tenho que o acabar depois de amanhã.
Era uma espécie de código da pressa. Aquilo não tinha explicação.
Despedimo-nos à porta do jornal, feito o último número, a sorrir. Tínhamos sido bombeiros sem água num incêndio que não existia, roçámos o absurdo do trabalho mais estúpido, da mais risível das inutilidades.
Telefonou-me passados anos.
- Vou-me embora da Íbis - disse - Vou fazer a minha editora. Pensei em deixar-te o meu lugar.
- Qual é o ordenado?
Ele disse-mo: era três vezes mais do que eu ganhava nos jornais.
- Está bem, vou - disse-lhe.
- Vê se apareces já amanhã ou depois. Passo-te isto. É fácil.
Fácil, dizia ele. Tinha erguido um império de fancaria, tinha feito uma panóplia de imbecilidades e algumas coisas notáveis. De Corin Tellado aos livros de anedotas, valia tudo. Fiquei a fazer os mais desgraçados trabalhos da literatura de massas. Mas eis que, de repente, encontrava ouro. Por exemplo o contrato para a edição portuguesa de "O Compromisso", de Elia Kazan. Coisas do Ross, pensava eu: Corin Tellado versus Elia Kazan.
O tempo correu. Chegavam-me notícias dele: o Ross está a fazer isto, o Ross está afazer aquilo, o Ross deixou um abraço, o Ross está afazer o "Jornal do Incrível", o Ross vai fazer outra vez "o "Cuto", o Ross planeia. Nunca mais o vi, mas imaginava-o naquela corrida louca, poética e mercenária.
Quando se fizer o inventário de tudo sobre o que ele lançou à sua sombra, talvez apareçam interessantíssimas surpresas. Há homens que não são fáceis de adjectivar.
No momento de fechar este texto parece que o estou a ver a morrer depressa, muito rapidamente, a escrever à máquina com um tiro na boca, dado pela vida. À Hemingway, mas de maneira lateral.
Uma morte portuguesa com veleidade americana.

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