sexta-feira, 29 de outubro de 2010

SARAMAGUEANDO


Numa carta, datada de 8 de Maio de 1967, José Saramago diz a José Rodrigues Migueis:

Sabe que fui promovido a crítico literário? E da Seara, ainda por cima, que é coisa fina. Eu conto: Aqui há meses telefona-me o Costa Dias a dizer que queria falar comigo. Que era, que não era, e vai daí vem o convite. Abri a boca de puro pasmo. Encontrámo-nos, e eu, honesto e perplexo, modesto e desconfiado, dou as minhas razões Contra: falta de preparação e de grau universitário, pouco tempo disponível ou nenhum, independência ideológica, etc., etc. A nada o Costa Dias se moveu. Que eu sou um sujeito assim, que eu sou um sujeito assado, e por aí fora. Acabei por aceitar. E lá estou. Veremos por quanto tempo. É que, de mim para mim, assentei que à mais pequena pressão ou torcidela de nariz, tiro de lá os pés. Para o último número, escrevi duas críticas, uma das quais a Censura deitou abaixo. Bom princípio.

José Saramago publica a sua primeira crítica na Seara Nova no nº 1459 referente a Maio de 1964, e a última aparece no nº 1476, referente a Outubro de 1968.

Numa crítica a O Ser e o Ter de José Marmelo e Silva, e publicada na Seara Nova nº 1472, referente a Junho de 1968 escreve:

José Marmelo e Silva há-de vir a dar muitas dores de cabeça aos historiadores da nossa literatura. Entretanto, vai incomodando os críticos encartados ou aqueles que, como nós, sem carta nem diploma, vão fazendo o que podem para dar conta do que lêem aos leitores de boa fé.

José Saramago, para além das acima referidas, colocou como assustada condição não fazer crítica de livros de poesia.

Enquanto crítico da Seara Nova debruçou-se duas vezes sobre livros de Agustina Bessa Luís: 

“As Relações Humanas” e  “Homens e Mulheres”. 

Numa chamou “génio” a Agustina, noutra disse que Agustina “corre o risco muito sério de adormecer ao som da sua própria música”.

Quem não achou piada alguma à história foi José Gomes Ferreira, possivelmente, por entender que José Saramago seria a última pessoa no mundo a chamar “génio” a Agustina Bessa Luís.
 
A 2 de Janeiro de 1968 escreve José Gomes Ferreira no 4º volume dos seus “Dias Comuns”:
“Quase todos os críticos têm chamado génio a Agustina Bessa Luís (verdade seja que alguns depois se arrependem; Gaspar Simões, Óscar Lopes, José Régio, sei lá quantos).

Agora, chegou a vez ao Saramago que, no último número da “Seara Nova”, não resistiu a proclamar: “como é possível não reconhecer e declarar que se há em Portugal um escritor onde habite o génio (vã esta palavra, ainda que perigosa e equívoca) esse escritor é Agustina Bessa Luís?”

Abordando um outro livro, “Eva” de Sá Coimbra, Saramago considera-o, entre outras coisas, “uma oportunidade perdida” O autor (”sou um homem do foro e estou habituado à análise critica das provas antes de condenar…”) dirige-lhe uma carta querendo saber dos porquês da análise de Saramago. Na volta o crítico diz: “Valerá a pena responder? Então se eu tenho chamado obra-prima ao livro de Sá Coimbra ele perguntar-me-ia também porque?"  Acaba por colocar o seguinte ponto final na história:

“O ponto final é mesmo um ponto final. Tenho outras críticas a fazer (mas valerá a pena?) e Sá Coimbra outros romances a escrever. Marco um encontro a Sá Coimbra para daqui a vinte anos. O mais certo é estarmos ambos esquecidos. Não nos demos, pois, demasiada importância…”

A última crítica de José Saramago na “Seara Nova”,  aborda dois livros: “O Despojo dos Insensatos” de Mário Ventura e “O Delfim” de José Cardoso Pires.

Sobre a crítica ao livro de Cardoso Pires há-de escrever, a 22 de Julho de 1994, um texto que consta do Vol. II dos “Cadernos de Lanzarote”:

“Agora eis-me perante os fantasmas de opiniões que expandi há quase trinta anos, algumas bastante ousadas para a época, como dizer que Agustina Bessa Luís “corre
o risco muito sério de adormecer ao som da sua própria música”. Apesar da minha inexperiência, e quanto sou capaz de recordar, creio não haver cometido grossos erros de apreciação nem injustiças de maior tomo. Salvo o que escrevi sobre “O Delfim” do José Cardoso Pires: muitas vezes me tenho perguntado onde teria eu nesse momento a cabeça, e não encontro resposta…”

Hoje, relida a crítica, percebe-se o espanto de Saramago ao” não saber onde tinha a cabeça” quando se debruçou sobre “O Delfim” .

Conhecendo-se o Saramago de então, não é fácil encontrar motivos para não ter entendido (?) o que Cardoso Pires queria com o livro.

Só Saramago nos poderia responder, e nunca o fez claramente.

Uma boa altura para lembrar o estafado "ninguém é perfeito!" 

Legenda: Mário Dionísio, José Cardoso Pires e José Saramago na Avenida da Liberdade, em Lisboa, por ocasião de uma manifestação pacifista.

Fotografia de Luis Ochoa, “Expresso”.

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