terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

DEVIA MORRER-SE DE OUTRA MANEIRA


Num 8 de Fevereiro de há 26 anos, José Gomes Ferreira pregou-nos a partida de deixar de ser eterno, quando já nos tínhamos habituado à sua imortalidade.
O dia em que o meu mundo ficou mais pequeno.
Há homens que desaparecem e logo se descobre que estavam mortos há muito. Mas há homens que ficam connosco, que nos acompanham pela vida, como tesouros silenciosos no fundo do mar. Aconteceu com o Zé Gomes Ferreira.


Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis..

Legenda: José Gomes Ferreira sentado na sua mesa de trabalho em Albarraque. Em cima o retrato pintado por Nikias Skapinakis – 1952
Fotografia retirada da “Fotografia de José Gomes Ferreira”, Publicações Dom Quixote

1 comentário:

Anónimo disse...

É sempre um enriquecimento mental
vir aqui, e ler coisas que só
dignificam a natureza humana.
Este texto é muito belo, mesmo
falando da morte!
M.J.