terça-feira, 4 de junho de 2013

O PRAZER DE FAZER COISAS INÚTEIS


Dez anos sobre a morte de Augusto Abelaira.

Um homem inteligente, lúcido, um escritor desconcertante e amável
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Escreveu pouco mas o pouco que fez está a letras bem vincadas na História da Literatura do Século XX.

Hoje apenas será (re)lido por gente que tem o gosto e o prazer por prosa antiga.

Vivia a maior parte dos dias em cafés, a escrever, a preguiçar.

É dele um dos mais bonitos retratos do que é um café:

Como eu escrevo nos cafés, o que eu precisava era que houvesse cafés para, durante a manhã, estar a escrever. Como os cafés vão desparecendo, a possibilidade de escrever é cada vez menor. Quando todos os cafés tiverem desaparecido de Lisboa eu encerro a escrita. Deixo de escrever, isto é, vou morrer, quando fechar o último café em Lisboa onde possa escrever.

Rareiam cada vez mais, mas ainda há cafés em Lisboa.

Abelaira é que tem faltado ao encontro com a escrita, com a conversa:

José Gomes Ferreira, em Julho de 1968, nos seus DiasComuns, a dissertar sobre o fecho dos cafés:

Isto já dá vontade de rir, mas A Cubana também fechou hoje. Sumiu-se. Vai possivelmente transformar-se em Banco como outros Cafés desaparecidos – com tanta raiva nossa?
E agora? Onde instalaremos o novo lar de encontro e convívio diário – indispensável à saúde intectual de todos nós?
O Carlos propôs o botequim da esquina em frente.
-Parece um café de província… De Cantanhede… é estupendo!

(…)

Lá estivemos hoje no tal café de província da Avenida da República: o Abelaira, o Carlos, o João José Cochofel e eu.
O dono é quem faz o cafezinho e serve à mesa.
Rabujento, aborrecido com todos aqueles herdeiros inesperados d’ A Cubana em frente, que lhe vinham interromper o ripanço – pregou logo uma descompostura no João José que, para ficarmos mais à larga, quis juntar duas mesas.
-As mesas não são para tirar dos sítios… - decretou.
- Estão colocadas da melhor maneira, para não abanarem e entornarem os líquidos.
Como quem diz: se não lhe convém ponha-se a cavar.
Encolhemo-nos humildemente. Os Cafés são tão poucos (é uma espécie em vias de extinção) que bem merecem as pequeninas humilhações – que só os fátuos repelem ferozes para parecerem importantes.

Gosto muito de Augusto Abelaira: da escrita, da pessoa que foi, uma amabilidade desconcertante.

Ser de esquerda, continuar a ser de esquerda, é sentir em cima dos ombros a responsabilidade pelo mundo, não entrega-lo aos outros.

Nunca teve empregos de horários de seis horas por dia para não enfrentar o drama de não arranjar tempo para escrever.

Não elogiava a preguiça mas também não a lamentava, apenas a reconhecia. O tempo livre, não o ocupava – dispersava-o.
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Mário Ventura pergunta-lhe:

- Como? Com passatempos?

- Não. É estranho, não sei bem explicar, é ocupado de facto a não fazer nada, nem sequer ler. É ocupado…

- Em contemplação?

- Pois. Não sei bem explicar, porque nem sequer há contemplação. É ocupado a dispersar o tempo, a fazer coisas inúteis.

- O que não parece fácil.

- O que não é fácil. Mas eu suponho que tenho essa arte. Grande parte do meu tempo, com efeito perde-se nos cafés.

- E não tens a consciência do tempo perdido?

- Tenho, sofro um bocado com isso. Mas também tenho uma certa consciência de que só posso trabalhar perdendo tempo. Sou um indivíduo com pouca capacidade de trabalho, canso-me rapidamente.

Legenda: fotografia de Joaquim Lobo na contracapa de A Cidade das Flores, Edições O Jornal.


O diálogo de Mário Ventura com Abelaira é tirado de Conversas, Publicações Dom Quixote, Lisboa Novembro de 1986.

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