domingo, 16 de maio de 2021

A LANTERNA MÁGICA DE PICASSO


 

Todos os olhos duma mulher jogados sobre o mesmo quadro. As feições do ser      

      amado perseguido pelo destino sob a flor imóvel de um sórdido papel pintado

A erva branca do assassínio numa floresta de cadeiras

Um mendigo de cartão desventrado sobre uma mesa de mármore

As cinzas de um charuto sobre o cais duma estação

O retrato dum retrato

O mistério duma criança

O esplendor inegável dum aparador de cozinha.

A beleza imediata dum farrapo ao vento.

O louco terror da armadilha num olhar de pássaro

O absurdo relincho dum cavalo descosido

A música impossível das mulas de guisos

O touro morto coroado de chapéus

A perna nunca igual duma ruiva adormecida e a orelha com as suas maravilhas

O movimento perpétuo apanhado à mão

A imensa estátua de pedra dum grão de sal marinho

A alegrai de cada dia e a incerteza de morrer e o ferro do amor na chaga dum

          sorriso

A mais longínqua estrela do mais humilde dos cães

E salgado sobre uma vidraça o tenro gosto do pão

A linha da sorte perdida e achada quebrada e endireitada adornada dos farrapos

           azuis da necessidade

a vertiginosa aparição dum cacho de uvas de Málaga sobre um bolo de arroz

um homem numa pipa derrubando a copos de tinto a saudade da terra

E a luz cegante dum pacote de velas.

Uma janela para o mar aberta como uma ostra.

O casco dum cavalo o cabo nu duma sombrinha

A graça incomparável duma rota sozinha numa casa muito fria

O peso morto duma pêndula e os seus momentos perdidos

O sol sonâmbulo que acorda em sobressalto a meio da noite a Beleza

            sonolenta e de súbito deslumbrada que deita sobre os ombros

             o pano da chaminé e o arrasta consigo no negro de fumo

            mascarado de branco de Espanha vestida de papéis colados

E tantas coisas mais

Uma viola de madeira verde embalando a infância da arte

Um bilhete de caminho de ferro com todas as suas bagagens.

A mão que expatria um rosto que desfigura uma paisagem

O esquilo acariciante duma rapariga nova e nua

Esplêndida sorridente feliz e impudica

Surgindo imprevistamente do troco apodrecido dum armário de garrafas

               ou dum armário de música como uma panóplia de plantas verdes

               vivazes e fálicas

Surgindo também imprevistamente do tronco apodrecido

Duma palmeira académica nostálgica e desesperadamente belo antigo como o

                 antigo

E as campânulas de vidro da manhã quebrada pelo grito dum jornal da noite

As terrificantes pinças dum caranguejo emergindo do fundo de um cesto

A última flor duma árvore com as duas gotas de água do condenado

E a noiva bela de mais sozinha e abandonada sobre o divã carmesim do ciúme

                  pelo lívido pavor dos seus primeiros maridos

E depois um jardim de inverno sobre o espaldar dum trono uma gata inquieta

                  e o bigode da sua cauda sob as narinas dum rei

A cal viva dum olhar no rosto de pedra duma velha sentada junto dum cesto

        de verga

E crispadas sobre o zarcão fresco do parapeito dum farol todo branco as duas

        mãos azuis de frui dum Arlequim errante que olha o mar e os seus grandes

        cavalos dormindo do sol poente e que depois acordam com as narinas

        espumantes os olhos fosforescentes enlouquecidos pelo clarão do farol

        e os seus horríveis lumes giratórios…

 

… As ideais abandonadas esquecidas perdidas.

Postas em estado de não prejudicar pela alegria e pelo prazer

As ideias de cólera escarnecidas pelo amor de cor

As ideias enterradas e aterradas comos os pobres ratos da morte sentindo

          vir o espantosos naufrágio do Amor

As ideias colocadas no seu lugar à porta do quarto ao lado do pão ao lado dos

          sapatos.

As ideias calcinadas escamoteadas volatilizadas desidealizadas

As ideias petrificadas diante da maravilhosa indiferença dum mundo apaixonado

Dum mundo reencontrado

Dum mundo indiscutível e inexplicado

Dum mundo sem bom-viver mas cheio de alegria de viver

Dum mundo sóbrio e embriagado

Dum mundo triste e alegre

Terno e cruel

Real e surreal

Terrificante e divertido

Nocturno e diurnos

Sólito e insólito

Belo como tudo.

 

Jacques Prévert

Tradução de José Saramago

Legenda: Jacques Prévert e Pablo Picasso

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