terça-feira, 25 de maio de 2021

LIDOS QUASE CLANDESTINAMENTE

Escrever poesia, como editar poesia, como sobretudo ler poesia, é um acto de amor louco, gratuito e perdulário em tempos como estes, de prosa e de literatura de negócios. As poucas dezenas de exemplares que os prelos, nos intervalos das facturas, dos cartões de visita e dos romances do Lobo Antunes, dão à estampa são lidos quase clandestinamente, no segredo dos quartos, por seres fugidios e perversos, e recolhidos depois no fundo das gavetas intemporais da maledicência dos colegas do escritório e dos assinantes das «Selecções». Ou são lentamente folheados nos cafés, às horas mortas em que os vendedores já voltaram às ruas e os empregados bancários aos balcões, por aristocratas pálidos e decadentes e por vagos estudantes de Letras.

Manuel António Pina em Crónica, Saudade da Literatura

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