terça-feira, 25 de maio de 2021

NOVAS CARTAS PORTUGUESAS


O jornal Público atingiu níveis de ilegibilidade. Pelo menos para os meus olhos. Virou neo-liberal e de direita.

Mas ainda mantém uns certos laivos de outros bons tempos. É o caso de ter iniciado uma colecção, Censura no Feminino, que reúne 10 obras de autoras portuguesas proibidas pela Censura, publicadas em fac-símile, e custam, cada um, 6,50 euros.

O primeiro volume da colecção foi Novas Cartas Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.

Pelos temas abordados, pela qualidade da escrita, o livro terá de ser, obrigatoriamente, lido por quem nunca o fez e passarão a saber da dimensão política e social que contém. Os tempos eram os da enganosa primavera política de Marcelo Caetano mas ainda hoje retém uma assombrosa actualidade.

«E a minha mãe fartou-se de moer o meu pai com palavras e choros, homem não te metas nestas coisas, olha o resultado que dá, a gente aqui a morrer de fome e os outros de barriga cheia, que o patrão não os castigou mas só a ti que eras o das ideias.

Que uma das tarefas dos patrões é a de castigar os empregados e a tarefa dos empregados é a de trabalhar para os patrões a fim de estes ficarem mais ricos e mais patrões. Talvez eu um dia case com um patrão.

A verdade é que isso não quer dizer nada, pois quando o meu pai vem bêbado e bate na minha mãe, grita: aqui eu é que sou o patrão. E ela cala-se e põe-se a chorar baixinho.»

Segundo Ana Luísa Amaral, foi em Maio de 1971, que Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa decidiram escrever um livro a seis mãos.

Em Janeiro de 1972 dão a obra como concluída e, em Abril, o livro seria publicado  pelas Estúdios Cor, então com direcção literária de Natália Correia que, mesmo tendo sido instada a cortar partes da obra, a publicou na íntegra.

O  pide-censor, a quem a obra foi atribuída para leitura e opinião, não teve dúvidas:

«Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referência, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução e processo-crime».

No processo podia ainda ler-se que o livro era pornográfico e a tentório da moral pública.

A Pide invadiu a editora e as livrarias e procedeu à apreensão da obra.

Chamadas à esquadra, as três autoras só não foram imediatamente presas porque Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa pagaram uma caução de quinze contos. Maria Isabel Barreno, por sua vez, provou que não tinha posses para isso e, em contrapartida, teve de comparecer uma vez por mês na polícia, para ofício de corpo presente. Posteriormente, David Mourão-Ferreira emprestou-lhe o valor para que também ela pudesse pagar a caução.

O julgamento começou a 25 de Outubro de 1973 e, nos interrogatórios, a acusação tentou por todos os meios saber quem escrevera o quê. Nunca o souberam e, Maria Teresa Horta, a única das autoras que ainda está entre nós, sobre essa autoria,  já disse que levava com ela o segredo.

O julgamento nunca veio a ter um fim.

Em Abril de 1974, um juiz mandava em paz as três Marias. 

Um livro de coragem dentro do cinzentismo ditatorial daqueles dias tão amargos.

Ana Luísa Amaral, é de opinião que o livro está muito além do seu tempo. Como as grandes obras normalmente estão. Entendo que este livro é uma grande obra, é um grande livro dentro da literatura portuguesa do século XX, dentro da história dos direitos humanos do século XX.

«Nas ancas tenho ainda a marca dos teus dedos; a marca da tua boca, o traço molhado da tua língua, dos teus dentes.

Desço:

macio deve ser o chão que as árvores conservam com a sua seiva.

Não necessàriamente meu amor sem ti a liberdade ou a pressa de morte do meu corpo»

3 comentários:

Seve disse...

O jornal Público atingiu níveis de ilegibilidade graças a José Manuel Fernandes.

Seve disse...

Será que estarei a ser injusto e precipitado?

Sammy, o paquete disse...

Sim, é com o ex-revolucionário que a veia direitista e neo-liberal do «Público» se começa a desenhar. Teve outros intérpretes, mas é ele que cunha o selo. A ambição leva-o a estar em projectos altamente financiados por gente que, eventualmente, não tem dinheiro. mas sabe onde o podem ir buscar. O espalhanço do ex-dono disto tudo é um exemplo flagrante.