terça-feira, 4 de maio de 2021

OLHAR AS CAPAS


Almoço de Domingo

José Luís Peixoto

Capa: Rui Rodrigues

Quetzal Editores, Lisboa, Março de 2021

Acordou sem idade. Lembrou-se do corpo, mas não mexeu um dedo. Sentiu a roupa da cama, indistinta daquela hora da madrugada, mas não abriu os olhos. Coberto pelo agasalho, preferia a escuridão à penumbra ou, pior ainda, aos números modernos e implicantes do despertador electrónico. As pálpebras eram-lhe leves, da mesma maneira que era leve o mundo naquele instante, o silêncio lá fora sobre a vila, o ar limpo que inspirava e que o desimpedia por dentro. Não mexeu um dedo ou qualquer músculo, tinha certezas. Sabia que envelhecer é acumular dores: começam por doer certos gestos, certos jeitos, virar-se de repente, agachar-se para atar o sapato: depois doem as ações mais comuns, sentar-se, levantar-se, caminhar; até que, por fim, dói tudo, dói estar, dói ser.

Essas eram as dores que não sentia ali.

Sem comentários: