sábado, 3 de setembro de 2022

OLHAR AS CAPAS


 

A Obra Ao Negro

Marguerite Yourcenar

Tradução: António Ramos Rosa, Luisa Neto Jorge e Manuel João Gomes

Colecção Ficção Universal nº 9

Publicações Dom Quixote, Lisboa, Abril de 1998

Continuando no seu caminho, ficou Zenão de novo só. Cerca do meio-dia, sentou-se para comer o pão, num talude de onde já se avistava a linha cinzenta do mar.

Um caminhante munido de um grande bordão veio sentar-se ao pé dele. Era um cego, que do seu alforge tirava também qualquer coisa para quebrar o jejum. O médico admirou a habilidade com que aquele homem de olhos brancos se desembaraçou da gaita-de-foles que trazia ao ombro, desatando a correia e pousando delicadamente o instrumento sobre a relva.

O cego felicitava-se por o dia estar tão bom. Ganhava a vida fazendo dançar os rapazes e raparigas na estalagem ou nos pátios das quintas; nessa noite ia dormir a Heyst, aonde no domingo tocaria; seguiria depois para os lados de Sluys: graças a Deus, havia sempre juventude bastante de quem auferir lucro e mesmo, às vezes, prazer. Mynheer talvez não acreditasse, mas havia mulheres que gostavam de cegos: não tinha nada que lamentar-se da desdita de já não ver.

Como muitos outros cegos, também este usava e abusava da palavra ver: via que Zenão era um homem na força da idade e que tinha educação; via que o Sol estava ainda a meio do céu; via que quem ia a passar numa vereda por detrás deles era uma mulher meio doente transportando uma canga de onde pendiam dois baldes. Nem tudo, porém, era falso nessas gabarolices: foi ele quem primeiro se apercebeu do deslizar de uma cobra por entre a erva. Chegou mesmo a tentar matar com o pau o repugnante animal. Zenão deixou-o, depois de lhe ter feito a esmola de um liarde e afastou-se no meio de ruidosas bênçãos.


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