sábado, 3 de abril de 2010

EI-LA A CIDADE PROMETIDA



Muito cedo se calou a voz de Daniel Filipe.

Morreu em 1964. Tinha 39 anos.

Deixou uma obra poética construída, essencialmente a pensar nos outros, a pensar na imediata necessidade política mais do que poética. Uma voz que nunca se calou ante uma ditadura que asfixiava todo um povo, um testemunho vigoroso mesmo que alguns poemas se mostrem irremediavelmente datados, mas sem deixarem de ser belos poemas.

Daniel Filipe conseguiu ser nesta “Pátria Lugar de Exílio "um grito de revolta e ao mesmo tempo de esperança.

Foi com um poema de Daniel Filipe que o programa “Limite”, que na madrugada de 25 de Abril transmitira “Grândola Vila Morena”, umas das senhas do Movimento dos Capitães., iniciou a sua primeira emissão em liberdade.

O 1º poema de “Canto e Lamentação na Cidade Ocupada”, incluído em “A Invenção do Amor e IOutros Poemas”, Editorial Presença, Lisboa s/d

“Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma

em praças ruas becos boîtes e monumentos


Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote


Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria

e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone


Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida

esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor”

Em 1965, o cineasta António Campos realizou “A Invenção do Amor”, um filme planificado a partir do poema de Daniel Filipe.

Este é o diálogo que precede o filme:

“Homem- Seria tão belo um mundo de amor.
Mulher – Duvido muito da capacidade de amar, vinda dos outros…
Homem – Todos a temos dentro de nós. É preciso utilizá-la… e saber utilizá-la. Mostrar-lha-emos estou certo.
Mulher Não nos compreenderão, rir-se-ão de nós. E depois a vida é curta de mais, para jornada tão longa!
Homem – Alguém disse há muitos anos: transporta todos os dias um punhado de terra e terás uma montanha.
Mulher – É verdade! E não disse: transporta todos os dias um punhado de água e terás um mar!
Homem – Bravo! É urgente começar… Os outros farão o cum
e da montanha!”

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