sexta-feira, 20 de maio de 2011

IDÍLIO EM BICICLETA



“A estória do Sul e dos cinco dias de Cuenca a Zumba, perto da fronteira peruana,
escreve-se com o olhar. O olhar dos magotes de crianças que andam a pé 9 quilómetros por dia, para irem à escola (do Canadá a Belavista, por exemplo). De galochas calçadas, sacola a tiracolo, por vezes uma fisga na mão, o pente adornando o bolso da camisa, chova ou faça sol, com frio ou calor... Orgulhosos e inseguros, soltam um: “hello, how are you?” Mas já não conseguem acompanhar o simples “what are you doing?” ou “how hold are you”. Hesitam quando lhes pergunto se querem tirar uma fotografia, mas atropelam-se numa correria quando lhes digo se querem ver a foto (no pequeno visor da máquina) – e os olhos incendeiam-se e o riso ilumina quando se reconhecem no mini-ecrã: seis dedos atropelando-se no visor. E quando se reúnem em volta da bicicleta, primeiro a medo, depois quase devorando-a, tocando no conta quilómetros, apertando os travões, fazendo rodar os estranhos pedais de encaixe, esticando-se para conseguir ver o mapa, correndo atrás de mim quando arranco, agarrados à bandeirola do atrelado ou empurrando durante uns metros…

A estória do Sul escreve-se com suor, que ferve nas subidas e gela nas descidas; com roupa que se molha e não se seca, que cheira a suor, mas cheira bem, que se encharca e nos encharca, mas que mantém a ilusão de protecção da chuva e de resguardo do frio nas descidas; com correntes, mudanças e travões que resmungam, rangem, gemem e choram, mas resistem (ainda e sempre!?); com bananas, bolachas, migalhas de “roscas” – que parecem cavacas – e de bolos – que parecem de novo farinha; com quartos partilhados com vários insectos, camas que parecem ter colchões, mas nem esteiras são, banhos de água fria, para não criar maus hábitos, pois, felizmente, a água da chuva não é quente!

A estória do Sul escreve-se, acima de tudo, com os sentidos – com todos os sentidos; com os músculos – muitos músculos; com a imensa força do querer, que é tão único, tão grande e tão sólido, quanto o Sul, ou não seria possível resistir-lhe.

A estória do Sul escreve-se sempre amanhã, pois hoje continuo pelo norte…

As fotografias do sul talvez se repitam constantemente, talvez nada acrescentem aos olhares do norte, talvez não espelhem a singularidade e grandiosidade do sul. Mas isso é seguramente falha das fotografias, do fotógrafo, do viajante, porque o sul, este sul (e o que espera por amanhã), não cabem em fotografias nem em filmes, nem em descrições, narrativas ou romances…”

Texto e imagens de Idílio Freire

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