quinta-feira, 12 de maio de 2011

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Quem me dera que Michelle Pfeiffer estivesse morta.
Não é de ódio este desejo. Move-me o amor: aos olhos, às altas maçãs do rosto francês de Michelle Pfeiffer. Insisto: quem me dera que estivesse morta.
Tenho maus pensamentos ao ver o fato de catwoman apertar-lhe os pequenos seios no “Batman Returns”. Como o sonso Daniel Day Lewis, torço olhos românticos às ancas opulentas que os vestidos vitorianos lhe emprestam em “The Age of Innocence”. Entre mim e Michelle há um superavit amoroso e só quero que, trágica, morra.
Em “Chéri”, ao amante que lhe elogia a beleza, responde: “Um bom corpo dura muito tempo”. Mas não dura sempre e o vil insecto dos dias corrompe a melhor carne. Pelas alminhas, não deixem que ela me envelheça.
Explico-me. Só é Bento XVI quem não pode ser Jesus Cristo. Crucificado e com 33 anos, Cristo mudou o mundo. Passaram 21 séculos e as lágrimas que Maria Madalena chorou por ele ainda não secaram. De Bento XVI, se restar, será uma múmia que um fresco de Michelangelo há-de tapar.
Só é Meryl Streep quem não pode ser  Marilyn. Três anos depois dos 33 e presumindo que só tinha uma maneira de se encontrar com Jesus, Marilyn morreu, ou morreu-se, a barbitúricos. Morrer assim é nascer para a eternidade.
É por isso que só é Clint Eastwood quem não pode ser James Dean. Jimmy espatifou um Porsche 550 e o corpo jovem num acidente caprichado. Fizera três filmes. O cinema há-de acabar e Nathalie Wood continuará a estremecer por Dean no planetário de “Rebel Without a Cause”. E haverá sempre um tipo de mais de meia idade a elanguescer com a lingerie que Marilyn guarda no frigorífico do Verão nova-iorquino de “Seven Year Itch”.
Hoje escondemo-nos da morte. Penteamo-nos, inchamos o lábio, rejuvenescemos o periclitante mamilo, e era melhor morrermos. A triste medicina corrige a vida, mas mata o sonho. Só a morte confere as cores do mito, a juventude eterna. Quando confere, a quem confere.
Pfeiffer tem as formas do mito. Ia invocar-lhe a beleza, mas a beleza é a menor das suas qualidades. Em “Dangerous Liaisons” e “The Age of Innocence”, à ingenuidade carregada de desejo junta a impudica vontade de ser vítima. Em “Russia House”, à câmara, que lhe quer comer a carne, oferece inteligência terna e gentileza emocional. O pingo do sublime cai na perigosa e lábil curva que, olhe-se o seu corpo donde se olhe, é a forma geométrica de a descrever em “Fabulous Baker Boys”. Isto sim, são virtudes. Faustianas, gostava eu.
Se Michelle Pfeiffer morresse agora, a doce morte iluminaria a cena em que canta Makin’ Whopee e ficaria mais vermelho o vestido, decotado em cima, decotado em baixo, com que se curva, ajoelha, rasteja e deita no estreito e imenso escândalo do tampo do piano a que se aflige e toca Jeff Bridges.
Pedir a morte de Michelle Pfeiffer é elogio e um pedido de socorro. Não queria que ela, da aparição na forma de lâmina loura em “Scarface” à deliciosa viúva de “Married to the Mob”, fosse menos do que eterna. Mas temo que os nossos dias não transijam e me venham dizer que o mito já não é deste tempo, nem este um tempo de mitos.”

Crónica de Manuel S. Fonseca na revista “Actual” do “Expresso”, 26 de Fevereiro de 2011

Legenda: imagem do filme “Os Fabulosos Irmãos Baker” de Steven Kloves (1989) com Nichelle Pfeiffer, Jeff Bridges, Beau Bridges.

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