sexta-feira, 26 de outubro de 2012

CRÓNICA 20 ANOS DEPOIS


O que foi feito dos meus amigos e das coisas belas e desmesuradas por que todos nós perdemos e ganhámos a juventude? Olho em volta e resigno-me: os meus amigos cansaram-se e jazem agora em empregos rotineiros à espera da trombose ou do enfarte. Alguns passaram-se com armas e bagagens (e, naturalmente, proveito) para o lado do inimigo. Os melhores (mas que sei eu?) engordaram – para dizer a verdade, todos engordámos... – e tornaram-se cépticos e amargos carregando a nossa memória comum como um pecado envergonhado. Muitos morreram em guerras sem sentido, ou tão só de tédio, de longo e insuportável tédio. Outros partiram para improváveis distantes lugares; um enlouqueceu (e esse foi, se calhar, o que, imóvel e cegamente, partiu para mais longe).

Aquilo por que, há 20 anos, estávamos dispostos a perder tudo o que tínhamos (que não era, aliás, grande coisa: tempo, paciência, a breve vida), desmoronou-se mesmo antes de termos levantado as primeiras inseguras paredes. Atrás de nós veio pesadamente, a perigosíssima estirpe da chamada gente prática (laboriosas formigas que, enquanto cantávamos na rua e fugíamos à frente de todas as policias, mastigavam metodicamente as sebentas em sombrios quartos onde não chegavam o fogo dos sonhos nem o clamor da vida), e reduziu a utopia a dimensões razoáveis e geriveis. (Façamos-lhe, no entanto, justiça: talvez, quem sabe?, sem eles cedo a despensa se tivesse esgotado e a festa tivesse acabado mal e numa tremenda ressaca...)

Hoje reunimo-nos lentamente nos cafés, aos fins de tarde, e recordamo-nos com complacência de nós próprios como de outras alheias coisas. Nessa complacência me parece, às vezes, entrever alguma secreta mágoa e algum ressentimento. Em quantas ocasiões não nos tenho surpreendido falando com azedume dos filhos, e dos seus desejos, e da sua vida (da sua única vida!), como se aquilo que a eles, um dia, será dado, por sua vez, perder fosse irrisório e mesquinho ao lado do que nós próprios perdemos?

Nessas alturas tento imaginar o que seríamos há 20 anos, pensado de gente como a que hoje somos. E o que imagino (mas a minha imaginação sempre foi pouco recomendável) embaraça-me e apavora-me. Ter-nos-emos tornado em pessoas tão feias e tão impertinentes como aquelas contra quem inventámos a vida e a liberdade? Tenho a inquieta sensação de que, sem o saber, repetimos, também nós, como os notários de Jacques Brel, um monótono papel num dramático e não menos monótono. E que os nossos sonhos passados (como agora os nossos sonhos presentes, tão óbvios, tão prováveis!), e nós, as nossas derrotas, a nossa melancolia, fazemos todos parte da mesma medíocre telenovela.

A verdade é que não me agrada absolutamente nada o argumentista destes últimos anos, muito particularmente o da versão portuguesa deles. O «happy-end» liberal que entusiasticamente por aí se anuncia mais se me afigura um terrível pesadelo de que, por muito que me esforce, não sou capaz de acordar. A diminuição da inflação e das taxas de juro, o equilíbrio da Balança de Pagamentos, a União Económica e Monetária, a televisão de alta definição, não me parecem, de todo em todo, coisas por que valha a pena alguém viver ou morrer, e não vejo nenhum épico na posse das faculdades mentais a dedicar uma epopeia à presidência portuguesa das Comunidades ou aos feitos financeiros do dr. Cavaco Silva. Foi este o temo e o lugar sem grandezas que legámos aos filhos? Valeu a pena tanta esperança para isto?

Olho os filhos e, pudessem eles compreender, dir-lhes-ia: “A culpa foi nossa”. Talvez tenhamos feito o que pudemos, só que não pudemos, como se vê pela figura junta, grande coisa. E agora não temos nada, ou quase nada, para mostrar aos filhos. Nem o tamanho da nossa vida, que mediríamos pelo tamanho dos nossos sonhos (e pelas nossas derrotas) não tivéssemos todos debandado e desertado para a nostalgia e para a ironia quando a vibrante bandeira da nossa juventude caiu nas mãos dos infiéis.


Manuel António Pina, Jornal de Notícias, 10 de Junho de 1992, retirada de O Anacronista, Edições Afrontamento, Porto 1994.

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