segunda-feira, 22 de outubro de 2012

EM TUNES HÁ SEMPRE UM BEY



Das andanças e desandanças de Manuel António Pina no encontro de temas para as suas crónicas, ocorre-me um texto de Eça de Queiroz, que consta das Notas Contemporâneas (1).

Numa publicação da época, Pinheiro Chagas, aparentemente sem razão, metera-se com Eça de Queiroz.
Para aplicar o seu espírito mordaz, a sua fina ironia, Eça não necessitava de ter razão. Mesmo que não tivesse, inventava-a.

Os pés sem cabeça do ataque de Chagas ao Eça só tinham uma razão de ser não ter tema para a crónica que prometera ao director do jornal.

É este o pedaço do texto do Eça, mantendo-se a ortografia da edição:

N’este momento, eu vejo d’aqui o leitor honesto, que vae percorrendo estas linhas, parar, pousar o jornal, o seu charuto, e dizer de si para si, ou às senhoras que costuram ao lado:
- Esta é singular! Caso lamentável e raro! O quê! é isto o que elle tinha escripto? Então, o procedimento do snr. Pinheiro Chagas não me parece regular. Pois o outro cita as palavras d’ um jornal inglêz, offensivas para Portugal, condemna-as como perversas e descortezes, e o autor da Morgadinha de Valflr atribui-lhas a ele e quer-lhe fazer suportar a responsabilidade d’ellas? Se isto são costumes e maneiras litterárias, bem faço eu em odiar os litteratos! Porque é que o snr. Pinheiro Chagas não citou o que o outro escrevera? Caso triste e antipáthico!...
Riamos, meu caro Chagas, riamos aqui a este canto, abraçados um no outro! Rebolemo-nos! Como se vê que aquelle honrado homem, que lê o Atlântico, ignora as amarguras, as necessidades formidaveis do jornalismo... A querer que você me citasse! O ingenuo! Se você me citasse, não podia fazer o artigo: e você tinha absolutamente de fazer o seu artigo!...
Eu conheço a situação: é medonha. Na véspera tem-se dito ao director do jornal, apertando-lhe ferventemente a mão, e com a voz a tremer:
- Palavra de honra, menino. Pela minha vida, que tens lá o artigo, além de ámanhã, às nove horas. Eu sou incapaz de te comprometter! Juro-to, pela alma de meus filhos... Boa noite. Lá o tens!
Depois, naturalmente, como você sabe, não se pensa mais no artigo. Mas, cruel destino! no dia aprazado, lá toca a campainha, lá chega, fatal, implacável, irrevogável — o moço da typografia!
É horroroso. Sobretudo quando elle usa botas que rangem! Fica à espera, passeando no pátio ou no corredor: e aquele lento gemer de solas tristes, cadenciado e accusador, allucina!

E cá no nosso gabinete, que pavorosa lucta! As cinco tiras de papel alli estão sobre a mesa, lividas, ironicas, vazias: e é necessario enchel-as todas, de alto a baixo, com coisas extrahidas do nosso interior.
É trágico. A parte da carcassa humana a que se recorre primeiro é naturalmente ao craneo, deposito de ideias, impressões, adjectivos e theorias; aperta-se o craneo nas mãos frementes; sacode-se o craneo como uma velha algibeira: — nada sai do craneo. E as botas ao longe, a ranger!
Maldição! Recorre-se então ao peito, asylo dos affectos, dos sentimentos generosos. Talvez de lá saia um canto, um grito, uma apóstrophe. Arranha-se convulsivamente o peito; bate-se desesperadamente no peito como n’uma porta fechada: — o peito fica mudo como o craneo. E as botas ao longe a ranger!
Inferno! E então os crentes rezam à Virgem Maria; os atheus invocam a morte, a dôce anniquilação da matéria; os mais violentos pensam em attrahir o moço da typographia com palavras dôces, cortal-o aos pedaços com uma navalha de barba, esconder os fragmentos na sarjeta domestica... E as botas, lá no fundo, ironicamente, rangem!
Ah, caro Chagas, é d’ahi que véem as cans precoces. Sabe você o que eu fiz n’uma d’estas agonias, sentindo o moço da typographia a tossir na escada, e não podendo arrancar uma só ideia util do craneo, do peito, ou do ventre? Agarrei ferozmente da penna e dei, meio louco, uma tunda desesperada no Bey de Tunes...
No Bey de Tunes? Sim, meu caro Chagas, n’esse veneravel chefe de Estado, que eu nunca vira, que nunca me fizera mal algum, e que creio mesmo a esse tempo tinha morrido. Não me importei. Em Tunes há sempre um Bey: arrasei-o.
Por isso eu comprehendo bem que você não me pudesse citar. Que diabo! se me citasse, adeus bellas phrases! adeus bello patriotismo! adeus bello artigo! — E você ouvia, no corredor, as solas malditas rangendo. Talvez eu, no seu caso, tivesse feito peor…


(1)   – Eça de Queiroz, Notas Contemporâneas, Lello & Irmãos Editores, Porto 1945

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