sábado, 4 de janeiro de 2025

MÚSICA PELA MANHÃ


 Num velho Papel Datado, falava-se que chegou a guardar um 78 rotações da Hebe Camargo a cantar India, uma canção que, desde muito miúdo, ouvia lá por casa.

A música Índia escrita por José Fortuna, é a versão brasileira de um sucesso paraguaio, composto originalmente pelo músico José Asunción Flores e o poeta Manuel Ortiz Guerrero, ambos paraguaios.

A canção original fez tanto sucesso, que em 1944, por meio de um decreto do governo, foi oficializada como “Canção Nacional”, uma espécie de hino, que a faz ser reconhecida como parte da cultura popular paraguaia.

India é uma canção com uma variada quantidade de versões, onde encontramos a tal Hebe Camargo, Ângela maria, Nara Leão, Maria Bethânia, Roberto Carlos Caetano Veloso, Gal Costa.

Conheço muitas das versões mas existe uma que para mim é única: a de Gal Costa.

Cito uma memória de Nuno Pacheco, citada numa sua crónica no Público de 7 de Março de 2024:

« Foi há quase um ano, em Abril de 2023, que o Coliseu de Lisboa reservado para ouvir Gal Costa ficou deserto e em silêncio – Gal morrera, subitamente, em Novembro do ano anterior, deixando na música brasileira um vazio que jamais se preencherá, a não ser pela memória.»


A primeira versão de India, cantada por Gal Costa, está rodeada de polémicas a começar logo na capa do LP: «uma foto em close da cantora, somente com uma tanga vermelha, e na contracapa duas fotos de Gal fantasiada como índia, com os seios a mostra. O resultado disso, foi que as vendas só aumentaram. Foi originalmente censurado pela ditadura militar brasileira, mas a arte completa foi lançada por Costa em 2015.

Índia

Índia, teus cabelos nos ombros caídos
Negros como as noites que não tem luar
Teus lábios de rosa, para mim, sorrindo
E a doce meiguice desse teu olhar
Índia da pele morena
Tua boca pequena eu quero beijar

Índia, sangue tupi, tens o cheiro da flor
Vem, que eu quero te dar
Todo o meu grande amor

Quando eu for embora para bem distante
E chegar a hora de dizer-te adeus
Fique nos meus braços só mais um instante
Deixa os meus lábios se unirem aos teus
Índia, levarei saudade
Da felicidade que você me deu

Índia, tua imagem sempre comigo vai
Dentro do meu coração
Todo meu Paraguai

Índia, teus cabelos nos ombros caídos
Negros como as noites que não tem luar
Teus lábios de rosa, para mim, sorrindo
E a doce meiguice desse teu olhar
Índia da pele morena
Tua boca pequena eu quero beijar

Índia, sangue tupi, tens o cheiro da flor
Vem, que quero te dar
Todo o meu grande amor

Quando eu for embora para bem distante
E chegar a hora de dizer-te adeus
Fique nos meus braços só mais um instante
Deixa os meus lábios se unirem aos teus
Índia, levarei saudade
Da felicidade que você me deu

Índia, tua imagem sempre comigo vai
Dentro do meu coração
Todo meu Paraguai

Todo meu Paraguai
Todo meu Paraguai
Todo meu Paraguai



Legenda: Hebe Camargo

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

POSTAIS SEM SELO


Se eu soubesse que o mundo terminaria amanhã, hoje ainda plantaria uma árvore.

Martin Luther King

OLHAR AS CAPAS


Crónicas e Discursos

António Borges Coelho

Capa: Rui Garrido

Editorial Caminho, Lisboa, Abril de 2024

Do saco sem fundo das palavras retirei Amizade e Esperança.

A Amizade vive do idêntico e do contrário, sustenta a claridade dos dias. A qualquer momento, perto ou longe, liga a mem´ria e os afectos. Povoa a solidão. Fortalece. Suspensos pelos seus laços conseguimos saltar sobre o fundo dos abismos.

Mas a esperança? Dourava as diferentes bandeiras que muitos da minha geração desfraldaram.

Mas, hoje, em quê? Na resolução da crise financeira? Na última sondagem? No euromilhões? Em Nossa Senhora de Fátima?

A esperança de que falo vê e inventa mulheres e homens que anonimamente acendem a alegria nos gestos quotidianos mais simples, na voz humana, nas mãos jovens ou nodosas, brancas, negras ou amarelas que se apertam. As segregações explodem, mas somos casa vez mais mestiços, mais humanos. A Esperança de que falo desemboca em multidões na rua larga em defesa da dignidade e das liberdades conquistadas em séculos de invenção, de luta, e de sangue. A esperança de que falo amanhece com um sorriso nos lábios.

O CÉREBRO

O cérebro tem dez milhões de células em contacto
umas com as outras e dez triliões de conexões

Tanta conexão
e tanta solidão


Jorge Sousa Braga

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

POSTAIS SEM SELO


Já Cacilhas, esconde o frio e agarra o Sol com tudo o que pode, desde as mãos aos pés, para sonhar com um mundo diferente, mesmo que o bom senso continue a estar longe de ser a melhor característica humana...

Luís Eme no Largo da Memória

Legenda: fotografia de Luís Eme

FAZIA HOJE 102 ANOS... SE AINDA POR CÁ ANDASSE... E QUASE NINGUÉM O LÊ!

«Nasci em 2 de Janeiro de 1923.

O horóscopo diz que Saturno me previu que a primeira mão que olhei directamente era de forma ainda hoje desconhecida.

Durante quase toda a minha infância fui perseguido pela presença constante antiquíssima máquina de costura que pretendia encontrar-se (e quando digo encontrar ponho, evidentemente, o caso do sexualismo actuante) com uma locomotiva que, de cabelos desgrenhados, uivava perdida no espaço. Daí as reminiscências, que ainda hoje tenho, da existência duma noite enigmática por onde eu caminhava exaustivamente, pisando rostos de crianças já mortas há séculos.»

Mário-Henrique Leiria em Fragmentos da Minha Vida Real

 

 «Nunca consegui perceber nada de coisa nenhuma, nem sequer de mim.»

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos

«… e agora vou acabar de ler um bom e saudável romance policial e liquidar o resto da garrafa de vodka (“Bogka” para fingir que sei russo) que está ao alcance da minha mão direita (como bom deus pagão que posso perfeitamente ser, não tenho o “Filho” à mão direita, mas sim um objecto de maior libertação e realidade).»

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos

Mário-Henrique Leiria, meu mestre de gin, e não só, amiúde dizia: «posso morrer de fome mas não peço esmola», ou ainda «para vivir de rodillas vale más morir de pie.»

«Agora tenho de sair. A carta acaba aqui. Vou tentar angariar subsistência, que eu, às vezes, até tenho o vício de comer... calcula, vícios burgueses...

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos


Mário-Henrique Leiria nasceu a 2 de Janeiro de 1923 e morreu a 9 de Janeiro de 1980.

Há quem diga que morreu de fome, de prolongado abandono. O Luiz Pacheco não concordava e escreveu: «Não dei por tal. Da última vez que o visitei na Vivenda Xavier, em Carcavelos, estava doente, acamado. Mas dotado do humor mordaz que sempre lhe conheci. Rimo-nos muito, como de costume. Não viveria no luxo, tão-pouco caíra no lixo. Diminuído no físico, alerta e destro no espírito.» 

Jorge Listopad:

«Nada de Passadismos para os «Secos & Molhados», disseram-me.

Por isso hoje começo por Mário-Henrique Leiria que morreu há uma semana. Tão presente. Escritor e poeta que baralhou as cartas de todas as convenções, o humorista de origem melancólica, magíster da ironia mordaz e terna, ao observar o mundo como o fruto surrealista de coincidências artísticas, realmente muito «chateado» com a desordem da ordem.

Lisboeta, nasceu em 1923. Curriculum: Belas-Artes, não acabadas, movimento surrealista, marinha mercante, caixeiro de praça, metalúrgico, caminheiro (estradeiro, como diz Mário de Andrade), Europa Latina, Balcãs, Transibéria (?), Carcavelos,  Carcavelos-hospital.

Autor de poesia, de centenas de textos jornalísticos, de contos, cujo livro Contos do Gin-Tonic em 73, no último marcelismo, foi um best-seller pela qualidade e livre respiração.

Chegaram depois a sua casa e disseram-lhe:

- Mas você não consegue escrever coisas compridas! Isso que faz é uma miséria.

- Coisas compridas, como?

- Bem, romances, crónicas autênticas, ensaios sólidos.

.-Não, isso não sou capaz.

- Então você não é um escritor.

- Pois não. Quem se atreveu a chamar-me tal coisa?
- Desculpe. Mas uma coisa comprida, por favor, não arranja?

- Quando as coisas vão a ficar maiores, deito logo fora. Compreende, não é?


«Estava a jantar no PING-PONG com uma amiga realmente simpática.

Na altura do conhaque a acompanhar o café, lembrou-se de repente: «e se este fosse o último?»

Pediu mais outro conhaque, mesmo antes de acabar o que estava a degustar.

À porta, quando saía, o Tião Medonho atirou-lhe quatro de 38 exactas, abaixo do diafragma, e foi-se embora.

Isto de religião é uma coisa tremendamente complicada, sempre tenho dito. E a minha mãe confirma.»

Mário-Henrique Leiria em Contos do Gin-Tonic 

IT'S ALL RIGHT MA

Está tudo bem, mãe,

estou só a esvair-me em sangue,

o sangue vai e vem,

tenho muito sangue.

 

Não tenho a paciência,

nem tempo que baste

(nem espaço, deixaste-me

pouco espaço para tanto existência).

 

Lembranças a menos

faziam-me bem,

e esquecimento também

e sangue e água a menos.

 

Teria cicatrizado

a ferida do lado,

e eu ressuscitado

pelo lado de dentro.

 

Que é o lado

por onde estou pregado,

sem mandamento

e sem sofrimento.

 

Nas tuas mãos

entrego o meu espírito,

seja feita a tua vontade,

e por aí adiante.

 

Que não se perturbe

nem intimide

o teu coração,

estou só a morrer em vão.


Manuel António Pina de Cuidados Intensivos em Poesia,Saudade da Prosa

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

POSTAIS SEM SELO


 Estar vivo é estar à morte, cativo de um plim da sorte.

João Grabato Dias

Legenda: pintura de António Quadros/João Pedro Grabato Dias

PAPÉIS DATADOS


 Nasceu em Março de 1945.

Pertence à geração Ié-Ié e isso nunca lhe causou qualquer tipo de comichão, outros preferem ser Geração de 60.

É mais de livros e de filmes do que de músicas. Musicalmente não é tipo de confiança. Todo o seu gosto musical é caótico, uma completa anarquia, não dá para entender. Se gosta, gosta, se não gosta, passa à frente.

Vai de Vivaldi ao Conjunto da Maria Albertina, passa por Tony Bennett, Pete Seeger, Gram Parsons, Neil Young, Agostinho dos Santos. Confuso? Certamente que sim, mas a família diverte-se, os amigos nunca entenderam e, no fundo, apenas tenta seguir os passos do velho Saint-Just quando dizia que a felicidade, seja lá o que isso for, é possível!

Eram de 78 RPM os primeiros discos de casa do  pai, que rodavam num “pick-up” instalado num móvel com um rádio “Blaupunkt” que, para além do alti-falante central, tinha dois laterais.

O pai tentava fazer perceber ao avô que aquilo era a estereofonia, o avô era quase surdo e acenava com a cabeça.

Os bailes de aniversário, ou Carnaval, tinham, por exemplo, o Renato Carosone a cantar “Torero” ou a Maruzella, também Nat “King” Cole e Line Renaud, enfim, o que havia à mão e não era muito. Os bailes da vida como, noutro contexto diria, o Milton Nascimento.

Vieram depois uns 33 RPM, (que eram um “LPs” mais curtos) “Popular Favourites” da “Philips” com selecção de canções do Frankie Laine, da Jo Stafford, dos “Four Aces” a “Orquestra de Roberto Inglês”, por aí fora. Depois chegaram os “EPs”. 

O pai tornou-se um fã do Paul Anka, do Pat Boone e apanhou a boleia.

Os 78 rotações partiram-se. Guardava um da Hebe Camargo a cantar “Índia”, mas nunca mais o viu. Dos EPs e dos 33 rotações a maior parte perdeu-se ou foi desviada.

O primeiro “EP” comprou na “Discoteca Universal” (30.06.1966) , “You Were on My Mind”, do Crispian St. Peters, por causa do “The Pied Piper” que ainda hoje ouve com imenso prazer e que lhe traz sempre à memória, o Cândido Mota a dizer, no “Em Órbita”, já com as primeiras espiras a correr: “sigam-me que eu sou o tocador da flauta mágica”.

O primeiro “LP”, também na “Discoteca Universal” (20.07.1966) foi : “Adamo à L’Olympia – enregistrement original réalisé em direct Le Soir de la Premiére Le Jeudi 16 Septembre 1965”.

Estes os primeiros discos que comprou. Os outros que existiam eram as habituais ofertas de aniversário e Natal e os que o pai ia comprando quando o orçamento permitia.

                                                                                                            Dezembro de 2007

MÚSICA PELA MANHÃ

 


A arrumar jornais espalhados por cada canto da casa, fiquei com o Público de 26 de Dezembro na mão, precisamente na crónica de Nuno Pacheco lembrando que Todos os dias nasce uma pessoa… e morrem outras tantas.

Nuno Pacheco invocava algumas das figuras da cultura que nos deixaram em 2024.

Mais uns dias e falaria de Adília Lopes que morreu ontem.

Começamos um novo ano sem vermos resolvidos genocídios como os da Ucrânia e do Médio Oriente, por todos os cantos do mundo sem deles termos conhecimento e a crónica de Nuno Pacheco é um bom pretexto para a primeira música da manhã:

«Há uma canção de Amélia Muge que diz: “Todos os dias nasce uma pessoa/ todos os dias é dia natal”. Constatação de um facto, não o desejo solidário expresso por Ary dos Santos no poema Quando um homem quiser, que Fernando Tordo musicou e Paulo de Carvalho cantou: “Natal é em Dezembro/ Mas em Maio pode ser/ Natal é em Setembro/ É quando um homem quiser.” Porém, se todos os dias é mesmo dia natal, porque em todos eles nasce alguém algures no mundo – sendo o Natal (que acabámos de celebrar) marco de um nascimento, o de Cristo –, todos os dias é também dia letal, não só devido às mortes que fecham naturalmente ciclos de vida, mas às que abreviam inesperadamente tais ciclos – doenças, privações, misérias, maus-tratos – ou às que derivam do incontrolável impulso assassino que alimenta guerras e violências de todo o tipo.»