quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

À LUPA


Israel não pertence à Europa.

As razões porque participa na Liga de Campeões de Futebol e concorre ao festival de canções da Eurovisão, são desconhecidas das gentes vulgares, onde me incluo.

Perante a decisão formalizada esta tarde de autorizar a contestada participação de Israel, quatro países já vieram comunicar que estarão ausentes do concurso, a ter lugar de 12 a 16 de Maio em Viena, capital da Áustria: Irlanda, Países Baixos, Eslovénia e Espanha. Espanha, que conta com duas vitórias na competição, é um dos chamados "cinco grandes" da Eurovisão, ou seja, um dos países que contribuem com mais dinheiro para a UER e por isso têm acesso directo à final do festival. A Irlanda já ganhou sete vezes desde que começou a participar, há seis décadas, enquanto os Países Baixos venceram cinco edições.

Portugal, por sua vez, vai manter-se na competição. 

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, foi expulsa da UEFA e do Festival de Canções da Eurovisão.

Israel, há longo tempo a praticar um genocídio em Gaza e a perseguir o povo palestinianao, continua, alegremente, a dar chutos na bola na Liga dos Campeões e a fazer parte do festival de cantigas.


NOTÍCIAS DO CIRCO

A Vasp, empresa que distribui jornais e revistas pelo país, anunciou que a partir de Janeiro vai deixar de garantir a distribuição diária de imprensa em oito distritos do interior. As populações de Beja, Évora, Portalegre, Castelo Branco, Guarda, Viseu, Vila Real e Bragança correm assim o risco de ficar sem acesso às publicações nacionais e locais.

Num comunicado, a Vasp informou que esta decisão é consequência de uma “situação financeira particularmente exigente, resultante da continuada quebra das vendas de imprensa e do aumento significativo dos custos operacionais”.

OLHAR AS CAPAS


O Navio Dentro da Cidade

André Kedros

Tradução: Vítor de Almeida

Colecção: Biblioteca Europa-América nº 6

Publicações Europa- América, Lisboa, Fevereiro de 1969

Vassili descia a rua que ia dar ao porto. Era uma rua mal calçada, onde as crianças corriam, gritavam e enchiam com a sua alegria paradoxal, o fim daquele abafado. As casas dos operários alinhavam-se, todas semelhantes, com velhas latas de gasolina cheias de gerânios. Alguma velhinhas sentavam-se às portas, com as pernas encolhidas, esperando pacientemente no crepúsculo e, depois, a noite. Os movimentos de Vassili, ao descer a rua, eram bruscos e fatigados. Os seus pés doridos batiam por vezes nas pedras soltas. Quando isso acontecia, praguejava baixinho. Ao chegar junto à pequena Igreja de S. Nicolau, parou, cansado, e sentou-se numa pedra.

MÚSICA PELA MANHÃ

Falhei um dos concertos dos Galexixo na Casa da Música no Porto mas, quem por lá passou, trouxe-me uma T-shirt dos Galexico.

E é com o disco de Natal dos Galexico que ficamos com a Música desta Manhã.

A canção do John Lennon «Happy Xmas (War is Over)» e «Tanta Tristeza» uma canção interpretada pela Gizela João.

 

Da minha janela

Junto ao mar

Acendo uma vela

A todas as almas

 

Voy por la vida sin pensar

Que sin embargo se acabará

Voy por la vida sin pensar

 

Se quedarán tantas historias

Unas de amor, los días de gloria

No morirán las memorias

Cuando llore por tanta tristeza

 

Antes de abrir o meu coração

E aprender a dor do amor

Sentia me seguro

Contemplando o céu

 

A tua voz, como o som das ondas

Trouxe-me até este porto seguro

 

Unos se van y nunca vuelven

El que se rinde y desaparecе

Yo no me doy, aquí estaré

No pararé hasta no verte

 

Sin amar


CAFÉ MOUNIR

em torno da praça e de seu solitário cedro em círculos cegos
          caminhavam os velhos
a sineta de um mendigo e a obstinada fuga à palavra (seus
          eufemismos todos);
na mesa do Café Mounir, hoje à chuva, o lugar-comum do meu chá
          por beber
um engulho no telefonema breve: a voz do teu filho a dizer-me que
          quiseste ficar
no lugar em que a terra se te encostou ao peito largo de cedros faias
          e aveleiras
 
 
coxeavam em círculos ainda assustados, sempre de mãos dadas, pela
          praça do minarete
engalanada com reclames luminosos em línguas nazarenas; um cão
          cego à minha beira
submergiam do aquário índigo das ruas (olhos ao alto) e cegos
          jamais se perdiam
– sob as luzentes águas da montanha – de mãos dadas andavam;
          um cão à tua beira
 
 
eu pousava o auscultador e o fumo subia da minha boca para um
          retrato de Hayworth
pendurado em frente ao pórtico da esplanada, por detrás da
          teleboutique e das revistas:
e tu com ele para o canídeo dorso do céu – só esta noite – órfão
          de estrelas

Alexandre Sarrazola em Resumo: a poesia em 2013


quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

POSTAIS SEM SELO


Mesmo que faça frio, não aproximes do fogo um coração de neve.

José Tolentino de Mendonça

OS ITINERÁRIOS DO EDUARDO


 Brilhavam nas ruas as luzinhas de Natal, há uns tempos que andava a deixar-se morrer.

Os amigos, os álcoois fortes, os cigarros atrás de cigarros, os versos de Maiakovski a dizer-lhe que nesta vida é mais fácil morrer do que viver.

Perguntava-se, perguntava aos amigos: quem encheu de vazio esta nossa vida?

O Eduardo sabia, deixou-o escrito, que «tantas vezes, neste ofício de viver, quem entra nos caminhos da morte, está a procurar o sentido da vida. Vendo bem da sobrevivência.»

Naquela noite-manhã, começara o ano de 2004, chegou-se à janela do prédio onde vivia, na Travessa do Abarracamento de Peniche, ao Príncipe Real, talvez se tenha lembrado que ainda há estelas no céu, e para lá se mandou.

CONVERSANDO


 O botas-de-santa-comba impingiu-nos o fado, o futebol, Fátima.

Pensar por cabeça própria era considerado crime e sujeito a rigoroso controlo policial.

Se percorrermos os livros de leitura daquele tempo, verificamos que os que andaram na escola foram formatados para o patriotismo bacoco, para o culto da ordem, para a ideia que um Deus que nos livrava de todos os males, bastava apenas prestar-lhe  culto e acreditar.

A recente conquista dum campeonato de futebol por miúdos de 19 anos, permitiu que o presidente dessa coisa sinistra que dá pelo nome de FIFA, tivesse mostrado o seu espanto de como um país tão pequenino, consegue ter  tantos jogadores de alto gabarito.

Alguém terá que dizer ao senhor, que também temos escritores, arquitectos, músicos, cineastas, artistas de teatro, pintores, escultores, cientistas de primeira água, só que não lhe digamos tanto como ao futebol, pior ainda: não lhe ligamos nenhuma.

Portugal trata mal os seus artistas.

Somos um país distraído com o superficial e não damos importância ao essencial. da vida.

O principal problema dos portugueses é a falta de cultura.

País ainda repleto de analfabetos e analfabetos que até sabem ler e contar e medram, qual formiga branca, temos 3 jornais diários desportivos,  canais de televisão que  todos os dias a todas horas, têm programas desportivos com horas e horas de duração, para tratarem das mesmas banalidades, um golo mal anulado, um penalty que não foi marcado ou mal marcado. Um desses canais existe, Now de seu nome, com 3 horas de duração e que passados minutos os comentadores saltam para outro canal dos mesmos empresários-capitalistas para debitarem a mesma coisa, o tal golo anulado, o penalty que não foi marcado, que foi mal marcado.

Dedicassem as mesmas horas a um livro, a um filme, a uma exposição, e outro galo cantaria.

MÚSICA PELA MANHÃ


Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow! é uma das canções que mais chamamento natalício nos oferece. Poema de Sammy Cahn e música de Jule Styne, composta em 1945, o ano em que nasci. Tem uma enormidade de versões, mas gosto das de Dean Martin e Frank Sinatra.

Colaboração de Aida Santos




OLHAR AS CAPAS


O Riso de Deus

António Alçada Baptista

Editorial Presença

Capa: Teresa Cruz Pinho

Editorial Presença, Lisboa, 1995

A letra de Deus nem sempre é decifrável e ninguém conhece a língua em que escreveu a alma humana. Às vezes, a gente julga que as palavras chegam para esclarecer a vida, mas hoje, estou certo de que muitas coisas permanecem por detrás de palavras que ainda não foram feitas e outras, por detrás de palavras de que perdemos o uso.

AOS VINTE OU QUARENTA OS POEMAS DE AMOR

aos vinte ou quarenta os poemas de amor têm uma força directa,
e alguém entre as obscuras hierarquias apodera-se dessa força,
mas aos setenta e sete é tudo obsceno,
não só amor, poema, desamor, mas setenta e sete em si mesmos
anos horrendos,
nudez horrenda,
vê-se o halo da aparecida, catorzinha, onda defronte, no soalho, para
cima,
rebenta a mais que a nossa altura,
brilha com tudo o que é de fora:
quadris onde a luz é elástica ou se rasga,
luz que salta do cabelo,
joelhos, púbis, umbigo,
auréolas dos mamilos,
boca,
amo-te com dom e susto,
eles dizem que a beleza perdeu a aura, e eu não percebo, creio
que é um tema geral da crítica académica: dessacralização, etc., mas
tenho tão pouco tempo, eis o que penso:
décimo quarto piso da luz e, no tôpo, a, tècnicamente definida, lucarr
que é por onde se faz com que a luz se fac
e a beleza é sim incompreensível,
é terrível, já se sabia pelo menos desde o Velho Testamento,
a beleza quando avança terrível como um exército,
e eu trabalho quanto posso pela sua violência,
e tu, catorze, floral, toda aberta e externa, arrebata-me nos meus
setenta e sete vezes êrro
de sôbre os teus soalhos até à eternidade,
com o apenas turvo e sôfrego
tempo onde muito aprendo que só me restam indecência, idade, desgovêrno,
e sim pedofilia, crime gravíssimo
mas como crime, pedofilia, se a beleza, essa, desencontrada
nas contas, é que é abusiva?
e se me é defêsa, e terrível como um exército que avança, eu,
setenta e sete de morte e teoria:
o acesso à música, o rude júbilo, o poema destrutivo, amo-te
com assombro,
eu que nunca te falei da falta de sentido,
porque o único sentido, digo-to agora, é a beleza mesmo,
a tua, a proibida, entrar por mim adentro
e fazer uma grande luz agreste, de corpo e encontro, de ver a Deus se
houvesse, luz terrestre, em mim, bicho vil e vicioso

Herberto Helder de Ofício Cantante em Resumo: a poesia em 2009

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

POSTAIS SEM SELO


O problema do nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser.

Paul Valéry

CONVERSANDO

E prontos…

Como escrevi por aqui, lá comprei o Tomo III da Conta-Corrente do Vergílio Ferreira que inclui os diários de 1982 a 1992, que estavam em falta na Biblioteca da Casa.

E vim a arrastar as 1089 páginas do livro, e na viagem de metro, de regresso a casa, fui folheando aqui e ali, finalmente a Conta-Corrente tem um índice onomástico.

No que, em diagonal, fui lendo, deu para confirmar, que tinha razões suficientes, para não ter comprado os volumes publicados na década de 90.

E lá voaram vinte e sete euros mais setenta cêntimos!...

Claro que terá de existir uma leitura mais serena e cuidada, mas como o livro pelo seu peso, não o poderei colocar debaixo do braço quando saio de casa, está ali na mesa do cantinho à espera…

Razão tinha Seve, o viajante deste Cais, quando escreveu um postal ao editor Francisco José Viegas responsável na Quetzal pela publicação da obra de Vergílio Ferreira:

 

«Caro Francisco José Viegas

Nunca saio de casa sem levar comigo um livro. Mas hoje, com grande desilusão minha, verifiquei que um dos grandes "escritos" da língua portuguesa foi editado como se fosse ser vendido para a construção civil (tijolo) em vez de o ser para quem realmente o queira ler.
Perdoe-me meu caro mas ouso perguntar: dá algum jeito levar comigo para a praia, para os transportes públicos, para ler nos momentos livres, aquele tijolo que deve pesar, sem exagero, uns 2/3 kilos.
É um "assassinato" a publicação desta pérola da literatura portuguesa num calhamaço destes, sem ponta por onde se lhe pegar, absolutamente editado para quem não gosta de ler, intransportável para quem gosta de ler.
Perdoe-me o atrevimento desta minha opinião mas não podia deixar passar em branco esta grande "asneira" editorial, porque realmente queria possuir estes diários do grande Vergílio Ferreira, apesar de já os ter lido todos (8), pela Biblioteca Municipal.»

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE...


A falta que estes velhos urinóis fazem.

Este encontrava-se para os lados de Marvila.

Já há muito que as pernas não caminham para queles lados e não sei se ainda por lá se encontra.

Se um cidadão se quer aliviar já não os apanha e os cafés e os restaurante agora só têm os WCs para os clientes e como nos foi ensinado não nos podemos aliviar numa qualquer esquina.

OLHAR AS CAPAS


As Farpas

Ramalho Ortigão

Tomo I

Estudo de Augusto de Castro

Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1948

Depois celebrava-se a ceia, o mais solene banquete da família minhota. Tinham vindo os filhos, as noras, os genros, os netos. Acrescentava-se a mesa. Punha-se a toalha grande, os talheres de cerimónia, os copos de pé, as velhas garrafas douradas. Acendiam mil luzes nos castiçais de prata. As criadas, de roupinhas novas, iam e vinham ativamente com as rimas de pratos, contando os talheres, partindo o pão, colocando a fruta, desrolhando as garrafas.

Os que tinham chegado de longe nessa mesma noite davam abraços, recebiam beijos, pediam novidades, contavam histórias, acidentes da viagem; os caminhos estavam uns barrocais medonhos; e falavam da saraivada, da neve, do frio da noite, esfregando as mãos de satisfação por se acharem enxutos, agasalhados, confortados, quentes, na expectativa de uma boa ceia, sentados no velho canapé da família.

E o nordeste assobiava pelas fisgas das janelas; ouvia-se ao longe bramir o mar ou zoar a carvalheira, enquanto da cozinha, onde ardia no lar a grande fogueira, chegava num respiro tépido o aroma do vinho quente fervido com mel, com passas de Alicante e com canela. Finalmente o bacalhau guisado, como a brandade da Provença, dava a última fervura, as frituras de abóbora-menina, as rabanadas, as orelhas-de-abade tinham saído da frigideira e acabavam de ser empilhadas em pirâmide nas travessas grandes. Uma voz dizia: — Para a mesa! Para a mesa!

Havia o arrastar das cadeiras, o tinir dos copos e dos talheres, o desdobrar dos guardanapos, o fumegar da terrina. Tomava-se o caldo, bebia-se o primeiro copo de vinho, estava-se ombro com ombro, os pés dos de um lado tocavam nos pés do que estavam em frente. Bom aconchego! Belo agasalho!

MÚSICA PELA MANHÃ


Willie Nelson escreveu e compôs Pretty Paper em 1963.

A canção começou por ser popularizada por Roy Orbinson e hoje conhece umas enormes mãos cheias de versões.

Apresentamos a versão de Willie Nelson,  Willie Nelson em dueto com Carly Simon e Roy Orbinson

Colaboração de Aida Santos



POEMA

Fundiu-se o olhar do poeta em lágrimas salgadas

e o poeta não quis cantar o que os seus olhos viram.

É que o poeta só cantava

para as meninas dos balcões floridos

de cactos e de cravos,

para aquelas

que sonham com estrelas

e príncipes de lenda.

– E preferiu cegar.

Fechar os olhos ao vaivém da rua

e continuar morando em sua Torre de Marfim.

Ah! Poeta inútil!

Enrouqueceu a cantar as líricas inúteis

aos cravos das janelas

das meninas fúteis

e ninguém mais se lembrará de ti.

Mas se cantares a rua, a fome, o sofrimento,

se abrires os olhos sobre o nosso mundo,

se conseguires que toda a gente o veja

e o sinta, e sofra, só de ver sofrer,

ninguém se lembrará de ti, poeta,

mas terás feito a tua luta,

e, nela,

justificado uma razão de ser.

 

Álvaro Feijó em Os Poemas de Álvaro Feijó

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

POSTAIS SEM SELO


Há um ditado que adapta uma fábula do Esopo: enquanto os animais não tiverem historiadores, as crónicas da caça exaltarão os caçadores.

Domingos Abrantes na Revista Somos Livros, nº 40/ Verão de 2025.

À LUPA

1. 

O primeiro-ministro israelita enviou um requerimento ao presidente de Israel, Isaac Herzog, pedindo oficialmente que o amnistiasse nas acusações de corrupção de que é alvo há vários anos. O anúncio foi feito pelo próprio Benjamin Netanyahu, que justifica a intenção dizendo que ser arguido no processo dificulta a ação do seu governo.

2.

O sargento que, com outros nove militares da GNR e um agente da PSP, foi detido por suspeitas de controlar e coagir imigrantes por conta de empresários, ia comprar uma herdade de 160 mil euros no Alentejo.

3.

 «A tentativa de enfraquecer a negociação colectiva, como prevê a proposta de reforma laboral do Governo, é uma escolha que custa caro – não apenas aos trabalhadores, mas ao futuro económico do país.»

Ricardo Paes Mamede no Público

4. 

Condutor alcoolizado e sem carta que atropelou militar da GNR de Silves e fugiu levava duas crianças dentro do carro.

5.

A campanha do Banco Alimentar Contra a Fome recolheu este fim de semana 2.150 toneladas de alimentos, avançou hoje a instituição de solidariedade social, menos 2,8% do que na campanha homóloga de 2024.

6.

As receitas globais do sector do armamento aumentaram acentuadamente em 2024, impulsionadas pela procura gerada pelas guerras na Ucrânia e em Gaza, pelas tensões geopolíticas globais e regionais e pelos gastos militares cada vez maiores.

7.

A fuga de impostos das multinacionais custa 2,9 milhões de euros por dia.

O OUTRO LADO DAS CAPAS

O livro está basto manuseado, a capa voou para algures, e socorri-me do anúncio de um alfarrabista na internet, para o colocar em Olhar as Capas.

Havia um puto, o Buddy que foi testemunha de um crime, numa noite de Verão, quando passava o tempo na escada das traseiras do prédio em que vivia com os pais. Os assassinos deram-se conta do que os olhos do puto viram e tentaram matá-lo.

Eu tinha, mais ou menos, a idade do Buddy quando li o conto na Antologia do Romance Policial. Recordo bem a sua leitura, devorei-o numa noite, a ansiedade, o suspense, os arrepios estão, hoje bem presentes.

Talvez pudesse dizer que a leitura deste conto de William Irish, lançou-me para o futuro gosto por romances policiais. Fui um ávido e constante leitor dos livros da Colecção Vampiro que existiam na Biblioteca da Casa.

Mais tarde vi, no Cinema Rex, o filme a preto e branco e todos aquele labirinto das escadas de ferro onde decorre a acção.

Buddy era um rapaz imaginativo. Naquela noite viu o crime e, sozinho, os pais não acreditavam nele («Da próxima vez que me apareças com intrujices, ferro-te uma sova que perdes a vontade de as repetires.»), a polícia também não, mas consegue desvendar o que os seus olhos viram.

E voltei a ler o conto.

OLHAR AS CAPAS


Mestres do Conto Policial

2ª Série

Diversos autores

Prefácio e tradução: J. Natividade Gaspar

Portugália Editora, Lisboa Agosto 1954

O garoto tinha doze anos e chamava-se Buddy. O verdadeiro nome era Charlie, mas tratavam-no por Buddy.

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE...

Sou do tempo em que era proibido pisar a relva dos jardins, jogar à bola na rua, mas havia outras possíveis e diversas brincadeiras.

Um tempo em que as avós, as mães diziam aos gaiatos: «vai brincar lá para fora». Agora ficam em casa agarrados a um telemóvel a fazer jogos, a ver e ouvir o que, por vezes, não se sabe o quê.

José Saramago em As Pequenas Memórias:

«Então digo à minha avó: «Avó, vou dar por aí uma volta.» Ela diz «Vai, vai, mas não me recomenda que tenha cuidado.»

Nos dias de férias de Natal, Carnaval, Páscoa, que passava em casa da minha avó paterna, na Rua da Senhora do Monte, saía porta fora e percorria as ruas da Graça, olhava o abundante comércio local, lembro uma pequeníssima tipografia, compunha folhetos para festas e bailes, cartões-de-visita, e ficava por ali a ver as máquinas, aqueles trabalhos, conheci a Vila Berta, a Vila Sousa, perdia largos tempos no Miradouro junto à igreja da Graça, hoje Jardim Sophia de Mello Breyner Andresen, ou no Miradouro da Senhora do Monte, a olhar a cidade.

Ainda Saramago: «Nesse tempo os adultos tinham mais confiança nos pequenos a quem educavam.»

Algo que os miúdos de hoje não sentem: saudades de brincar na rua.

VELHOS RECORTES


Mais uma passagem pelos Cadernos da Censura, publicados pelo Notícias da Amadora.


SABER VER DOS BASTIDORES

Saber ver dos bastidores

a própria figura em cena

medindo quanto engana a tão serena

atitude que se mostra aos espectadores

 

já não é mau    Mas importa

muito mais a muda voz

de si consigo em paz analisando

o que se vai por dentro desgastando

 

sem alarme observando  o lento fechar da porta

e o tanto que entretanto se passa já sem nós

 

Mário Dionísio em Terceira Idade 

OLHA, É NATAL OUTRA VEZ


 Aqui estou, de novo, dentro do mais maravilhoso tempo do mundo.

Começo sempre com esta canção, não só pela canção, também pela maravilhosa interpretação.

E, a partir de hoje, pelas manhãsvirei com uma música, uma canção.

Os tempos estão dificílimos, sabemos, mas quero desejar o melhor tempo de Natal que seja possível. 

Colaboração de Aida Santos


domingo, 30 de novembro de 2025

POSTAIS SEM SELO


Eu gosto de delicadeza. Seja nos gestos, nas palavras, nas ações, no jeito de olhar, no dia-a-dia e até no que não é dito com palavras, mas fica no ar…

Manuel Bandeira

Colaboração de Aida Santos

COMEÇOS DE LIVROS


Existem aquelas palavras de Herberto Helder: «Morrer era agora minha liberdade, e eu tinha a vida inteira para executá-la pormenorizadamente».

Também as do político e jornalista Vitor Cunha Rego, «A pessoa preparar-se para a morte é a grande finalidade da vida.»

Os mortos só sabem uma coisa: é melhor estar vivo.

Gostar de morrer sem dar por isso.

E há aquele começo de Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar, uma obra magnífica, lida as vezes precisas, não suficientes, para o compreender, e em cada leitura sempre algo de novo, «como é que deixai passar isto na(s) outra(s) leitura), onde tinha a cabeça?


«Meu caro Marco

 

Fui esta manhã a casa de Hermógenes, o meu médico, que acaba de regressar à Villa depois de uma viagem bastante longa pela Ásia. Devia ser observado em jejum; tínhamos marcado a consulta para as primeiras horas da manhã. Deitei‑me num leito depois de ter tirado o manto e a túnica. Poupo‑te a pormenores que te seriam tão desagradáveis como a mim próprio, e à descrição do corpo de um homem que avança na idade e se prepara para morrer de uma hidropisia do coração. Digamos apenas que tossi, respirei e retive o fôlego conforme as indicações de Hermógenes, alarmado, a seu pesar, pelos progressos tão rápidos do mal e disposto a atribuir as culpas ao jovem Iolas, que me tratou durante a sua ausência. É difícil permanecer imperador na presença de um médico e difícil também conservar a qualidade de homem. O olho do prático só via em mim um montão de humores, triste amálgama de linfa e de sangue. Veio‑me esta manhã, pela primeira vez, a ideia de que o meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, melhor conhecido por mim que a minha alma, não passa de um monstro dissimulado que acabará por devorar o seu dono. Basta… Amo o

meu corpo; serviu‑me bem e de todas as maneiras, e não lhe rega‑ teio os cuidados necessários. Mas já não conto, como Hermógenes pretende ainda fazer, com as virtudes maravilhosas das plantas e a dosagem exacta dos sais minerais que ele foi buscar ao Oriente. Este homem, aliás tão fino, dirigiu‑me vagas fórmulas de reconforto, excessivamente banais para enganarem alguém; ele bem sabe como eu odeio esse género de impostura, mas não é impunemente que se exerce a medicina durante mais de trinta anos. Perdoo a tão bom servidor esta tentativa de me esconder a minha morte. Hermó‑ genes é competente; é mesmo sábio; a sua probidade é muito su‑ perior à de um vulgar médico da corte. Terei a sorte de ser o mais bem tratado dos doentes. Mas ninguém pode ultrapassar os limites prescritos; as minhas pernas inchadas já me não aguentam as longas cerimónias romanas; sufoco; e tenho sessenta anos.»

À LUPA


 «Pela lei do doutor Ventura, o autor do golo da nossa vitória no Mundial de sub-17 não podia ser português».

Catarina Martins no debate televisivo com o presidente «daquela coisa».

MÚSICA PELA MANHÃ


 Poderá um não crente falar do Paraíso?

E o que é o Paraíso?

Jorge Luís Borges sempre imaginou o paraíso como uma espécie de Biblioteca.

Há dias, encontrei num número antigo da Seara Nova (nº 1447, Maio de 1966), um poema de André Frénaud traduzido por José Fernandes Fafe a que chamou Não Há Paraíso dedicado a Dylan Thomas que no decurso de uma conversa, imaginando e sonhando, tinha gritado: «Eu queria fazer ouvir a música do Paraíso»:

 

Não tenho o poder de ouvir

Não recebi o condão de imaginar

a música do ser

Alimenta-se de um não-amor

o meu amor

 

Só excitado pela recusa avanço

Leva-me nos seus grandes braços de vazio

O seu silêncio separa-me da minha vida

 

Ser serenamente a arder que eu cerco

Quando nos olhos enfim vou atingi-lo

já a sua chama os meus vazou

e transformou-se em cinzas

Depois

que importa o murmúrio miserável do poema

Que é nada, e não o paraíso


Vangelis compôs a música para o filme de Ridley Scott 1492: Conquista do Paraíso.

A cantora belga Dana Winner canta a canção Conquista do Paraíso.

É esta a nossa Música da Manhã.

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS

«Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo o meu pai a declarar no Registo Civil da Golegã o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai), e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacónico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, não precisei de inventar um pseudónimo para, futuro havendo, assinar os meus livros. Sorte, grande sorte minha, foi não ter nascido em qualquer das famílias da Azinhaga que, naquele tempo e por muitos anos mais, tiveram de arrastar as obscenas alcunhas de Pichatada, Curroto e Caralhana.

Entrei na vida marcado com este apelido de Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando, para me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar certidão de nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com grande indignação de meu pai, a quem, desde que se tinha mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele unicamente José de Sousa, como ver se podia nos seus papéis, a Lei, severa, desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um filho cujo nome completo era José de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do seu nome, passando a chamar-se, ele também, José de Sousa Saramago. Suponho que deverá ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu de muito, nem a nós nem a ela, porque meu pai, firme nas suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratassem unicamente por Sousa.»

José Saramago em As Pequenas Memórias

sábado, 29 de novembro de 2025

POSTAIS SEM SELO

Os pássaros não conhecem fronteiras.

Autor desconhecido

CONVERSANDO

Uma velha história: há livros maus de que gosto, há livros bons de que não gosto. Os exemplos são muitos.

NOTÍCIAS DO CIRCO


 Antevia-se que fossem assim os debates sobre as eleições presidenciais, acima de tudo pela presença do presidente daquela coisa.

Seve, um viajante deste Cais, dizia-nos há poucos dias, que pior que os debates, são os comentários das televisões após os debates.

Tudo o que ele diz é fétido e exige urgentemente a descida à sanita para o banho purificador do autoclismo.

Aquela coisa nem merece o nosso ódio, nem o nosso combate, antes desprezo e a nossa tristeza.

É certo que a esquerda fez erros, “desfigurou as linhas do seu rosto”, como disse Sophia, mas o Tribunal Constitucional, ao permitir a existência «daquela coisa»,  cometeu um erro enorme, hipotecou o futuro, já não muito firme e claro, deste país.

A comunicação social, principalmente a televisiva, em prol dos «shares» ajudou – e de que maneira! – com o seu constante visionamento dos disparates, das mentiras daquela gente, à desbunda total.

Valham-nos os deuses de todo o Olimpo.

MEMÓRIA, ONDE ESTÁS?


«A necessidade de falsear a história para se ter uma “história” legitimadora do poder
No entanto, tenho uma sugestão construtiva aos autores deste livro: no dia 25 de Abril, centenas de milhares de pessoas saem à rua para o comemorar. Por que razão se fez uma parada militar e não uma manifestação, apelando aos portugueses para apoiarem a vossa visão do “farol” do 25 de Novembro? Não é por falta de meios, órgãos de comunicação social, autocarros,
influencers e bots
do Chega nas redes sociais para colocarem centenas de milhares de pessoas na rua. A não ser que só faltem os portugueses.»

José Pacheco Pereira no Público de hoje.

Legenda: fotografia do Arquivo da Ephemera

MÚSICA PELA MANHÃ


Foi a semana em que tivemos a boa notícia que estava a ser republicada a obra de José Rodrigues Miguéis.

Em Outubro de 2001 realizou-se, em Lisboa, um colóquio sobre a vida e obra de Miguéis. Raúl Hestnes Ferreira, filho mais velho do poeta José Gomes Ferreira, relatou algumas memórias dos tempos em que conviveu com o autor.

Cito este pormenor:

«Ainda hoje me lembro do entusiasmo e felicidade com que ouvia a Sinfonia Brinquedo de Haydn, começando a dançar e arrastando todos os outros em fila.»

É essa obra de Haydn que será, hoje, a nossa Música pela Manhã.

O disco encontra-se na Biblioteca da Casa e faz parte de «Os Clássicos do meu Pai»


sexta-feira, 28 de novembro de 2025

POSTAIS SEM SELO

Uma ponte, uma grande ponte, nunca se vê

desde então, atravesso pontes que vão daqui ali, de nunca até sempre,

desde então, engenheiro do ar, construo a ponte inacabada entre o audível e o invisível

Octavio Paz em Árvore Adentro

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia. 

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Não gosto de Fundações.

Em Junho de 2007, a Fundação José Saramago fez 18 anos.

 

Texto de Pilar del Río:

«As pessoas, quando nascem, desconhecem o seu destino; as instituições, por outro lado, quando são criadas têm já traçados os seus dias, modos e objetivos de tal forma que descumprir o programa planejado não é fracassar – ato humano – senão é, ou pode ser, um delito. As instituições nascem amparadas por um programa que devem cumprir, não nascem para ser felizes, como as pessoas, embora na origem de algumas instituições o objetivo da felicidade não esteja distante. Digamos que a Fundação José Saramago nasceu para combater o esquecimento, a insensatez, o desprezo a que os seres humanos estão condenados. Ou seja, no fundo nasceu para que o humaníssimo desejo de felicidade possa ser cumpridos não só na vida pessoal daqueles que a geraram, amamentaram, cuidaram e a levaram à maioridade que agora tem, os 18 anos que acaba de completar, vividos dia a dia, tantas vezes contras as marés mais inclementes lançadas por deuses que de mar – e de amar – sabem muito pouco.

Maioridade. Na tarde em que José Saramago aceitou a idéia que lhe foi sugerida por Fernando Gómez Aguilera de criar uma fundação que interpretasse a sua visão de mundo, ou seja, colocasse em marcha uma Fundação que tivesse em conta os seus desejos de vida digna para os seus semelhantes, naquela tarde, decisiva na vida de José Saramago, não se falou de datas, porque há projetos que não têm data de validade. Dizer, naquela época, 18 anos, talvez significasse pouco, mas agora sabemos que, dia a dia, 18 anos é muito, é um esforço invisível que penetra na terra como fertilizante, que está presente e que atua, não se reforma, nem ofende ou humilha, simplesmente repete as palavras de uma declaração de princípios que demonstra que o outro é importante, está aqui, que é nossa incumbência, e nela seguiremos.

A Fundação nasceu para compartilhar culturas e abrir espaços. Também para dizer, na hora certa e também fora de hora, que a Declaração dos Direitos Humanos é uma constituição suprema da humanidade e que enquanto houver pessoas sem teto, sem água, sem escola e sem cuidado médico, viveremos fora da ordem que deveria governar o mundo; e que se permitimos que haja guerras, que a Terra esteja repleta de violência e genocídios (ostensíveis ou silenciosos), é porque aquilo que nos diferencia dos outros seres vivos, o uso da razão e a potência da consciência, desapareceu do planeta. O que levaria a retirar do dicionário e da vida o conceito de dignidade e colocar no seu lugar o “salve-se quem puder” que cada dia está mais em voga.

A Fundação nasceu para contrariar esse modelo, também para ser eco das melhores vozes que existem. Música, teatro, poesia encheram a casa central da Fundação e se espalharam pelo mundo como mensagem de convivência e reconhecimento, cumprindo assim o que está escrita na certidão de nascimento da fundação. A Declaração Universal de Deveres Humanos, projeto irrenunciável que obriga as pessoas, a sociedade e as instituições, tem um passo lento mas permanente. “A vida”, dizem, “já é muito difícil para assumirmos mais deveres”, e não é assim, pelo contrário, se todos estivéssemos implicados com a defesa do meio ambiente, do trabalho que se realiza, do lugar no mundo de todos e de cada um, a existência seria mais agradável para os mais de oito mil milhões de seres humanos que integramos o arquipélago Terra. Existem projetos para que a vida não seja este desespero, a Fundação conhece-os e expande-os, essa é a sua obrigação, nisso militamos. A Fundação José Saramago, que agora completa 18 anos, nasceu para ser, humildemente, uma proposta que enaltece as pessoas, culturas, vozes, projetos e vontades que lutam para superar a cegueira da razão. Seu âmbito de ação é o universo e o coração dos seres humanos. A Fundação é um lugar e um espaço, tem obrigações irrenunciáveis e um mestre. Não é pretensão chamar mestre a José Saramago se, dia a dia, ao ler os seus livros, descobrimos novas generosidades, que é o material de que está feita a Fundação e que define aqueles que a mantêm. Passaram 18 anos desde o dia fundacional. Seguimos.»

À LUPA

1.


As autoridades de combate à corrupção da Ucrânia estão a realizar buscas em casa do poderoso chefe de gabinete de Volodymyr Zelensky, Andrii Yermak.

2.
Em França, o chefe do estado maior do exército afirmou que as famílias deviam estar preparadas para perderem os filhos na guerra.

3.

Que polícias portugueses, donos de propriedades e estufas no Alentejo, escravizavam, perseguiam, mal tratavam, centenas de trabalhadores imigrantes, a viverem em condições abaixo da miséria mais miserável que se possa imaginar.

4.

No Fundão, 11 bombeiros voluntários da Associação Humanitária de Bombeiros,  foram detidos por, numa estranha e patética praxe, terem violado, sexualmente, um jovem recruta.

5.

Que, Hugo Soares, o chefe parlamentar do PSD, disse:

«Portugal está melhor, mas os portugueses também estão».

 

Que mundo maravilhoso!!!!!!

REOLHARES

RELACIONADOS

Publicado em 17 de Julho de 2020

Há uma frase de José Rodrigues Migueis que José Gomes Ferreira citou em A Memória das Palavras:

«Os sonhos da juventude, realizam-se sempre. Se não aos trinta, aos quarenta anos… ou aos cinquenta… ou aos sessenta… mas realizam-se sempre… A questão está em querê-lo bem do fundo da teima dos ossos!»

Exilado nos Estados Unidos, José Rodrigues Miguéis, mesmo longe, assistiu à queda da ditadura, viu a cor da liberdade, como poetizou Jorge de Sena.

Morreu em Nova Iorque no dia 27 de Outubro de 1980.

Tinha 78 anos.

«Muitas vezes me perguntaram, porque é que não regresso? Talvez porque nunca cheguei a partir.»

Por vontade expressa as suas cinzas vieram para Portugal onde chegaram em Maio de 1981 e tal como escreveu em A Escola do Paraíso:

«Não se pode ter nascido ali, viver a ver chegar e partir navios todos os dias, com um rasto de lágrimas e o esvoaçar de adeuses no azul, nem ouvir noite e dia estas vozes, sem ficar impregnado de irremediável nostalgia. Tudo isto, o rio imenso, os cais, o mar, os horizontes, se integra nele e ficará para sempre dentro dele como um apelo de longe e uma saudade, anseio de partir e de voltar: quando? e  para onde?»

Digo-o com mágoa, muita mesmo: José Rodrigues Miguéis está praticamente esquecido.

E é uma pena que não seja lido.

Segundo uma nota final que escreveu, Miguéis diz-nos que começou a escrita de O Milagre Segundo Salomé, sentado numa mesa d’A Brasileira do Chiado «Junto à porta, e sozinho como quase sempre, eu tenha tomado num papelinho de acaso a primeira nota para uma cena que viria a ser germe e fulcro do romance: «Onde a lava transborda,»

Deu-o, provisoriamente, por terminado pelos anos cinquenta e recopiou-o, em forma final entre 1966 e 67. Deu-o a ler a Mário Castro, a quem o livro é dedicado, a Rogério Fernandes, José Saramago, Maria da Graça Amado da Cunha, Prof. Oliveira Marques, outros de que não recorda o nome e todos tiveram, além de reparos, palavras de encorajamento.

«Houve até quem me incitasse a publicá-lo em pleno caetanismo - -«É agora a altura!» - num surto de crença nas boas intenções de que está cheio o nosso pequeno inferno. Quanto a mim, era mais um Romance-para-a-Gaveta, como outros, menos felizes, que esperam drástica revisão.»

Ainda da nota final, que tenho vindo a citar:

«OMilagre Segundo Salomé não é um romance histórico: não pretende reconstituir factos ou acontecimentos nem evocar pessoas cuja realidade ou verdade será apenas a que uns e outras assumirem aos olhos do leitor; e os que se inspiram da realidade aparecem aqui transpostos, anacronizados, telescopados ou conjugados seguindo as conveniências da narrativa. Qualquer semelhança entre este «milagre» e algum milagre do mundo não ficcional, deve-se apenas a uma assimilação lógica ou formal, e não ao desejo de fazer proselitismo ou de rebater o segundo.»

Miguéis considerava-o o seu melhor livro, mas a publicação em 1975, durante o PREC, prejudicou fortemente a atenção que crítica e leitores lhe poderiam conceder, o que deixou Migueis profundamente desgostoso.

Mas é um livro extraordinário que retrata a sociedade lisboeta nos primeiros anos do século XX, a decadência dos ideais da Repúblca que originarão o 28 de Maio de 1926 e tudo o que se lhe seguiu.

José Rodrigues Migueis recusou sempre qualquer espírito de nacionalismo, mas tinha um enorme sentimento pelo País onde nasceu, e exigiu ser sepultado em Lisboa.

No topo do texto, o monumento que encima o local onde estão depositadas as suas cinzas.

Reproduz-se a noticia que o Diário de Lisboa, aquando da chegada dos restos mortais, publicou no dia 4 de Maio de 1981.