domingo, 13 de novembro de 2016

DANTES OS COMBOIOS


Mais do que as viagens, mais do que ficar a olhar pelas janelas e os campos que corriam e não eu, foi o cinema que me deu a paixão pelos comboios.

O cinema a preto e branco, evidentemente, onde os comboios eram daqueles a sério, daqueles que apareciam e desapareciam entre espessas nuvens de fumo, e depois no meio delas acabávamos por descobrir o herói que chegava, ou que no final não tinha partido e decidira ficar nos braços da sua amada para sempre.

Daqueles que faziam o Gary Cooper olhar vezes sem conta para o relógio da parede, ao lado de uma Grace Kelly de chapelinho de abas com laçarote a prendê-lo ao queixo, esperando a desgraça que devia chegar a meio da tarde.

Daqueles em cujo topo Buster Keaton se passeava, entre túneis e precipícios, a fuligem do carvão empapando-lhe o corpo.

Daqueles onde havia sempre espiões, e freiras disfarçadas, e resistentes a fintarem os nazis, e velhinhas de carrapito que de repente apontavam uma pistola e fugiam com os sacos do tesouro federal.

Daqueles onde, a meio da viagem, surgia um morto que ninguém conseguia explicar.

Daqueles onde um polícia (o mau) perseguia um ladrão (o bom), saltando de carruagem em carruagem, e a gente a torcer na plateia para que a carruagem seguinte se desprendesse do resto do comboio e o ladrão pudesse regenerar-se no colo da rapariga loira, enquanto o polícia caía pela ravina no exacto momento em que o comboio enchia os ares com o seu apito, abafando-lhe os gritos.

Daqueles que nos faziam perceber que uma vida monótona e rasteira se podia redimir por alguns momentos de um breve encontro num pequeno restaurante de uma pequena gare de uma pequena cidade, entre amores clandestinos e silêncios deslumbrados.

Dantes, os comboios eram assim. E as gares. E pequenos restaurantes,  de soalhos a cheirar a sabão e cera, de mesas de ferro e madeira, e melancólicos criados que nos deixavam nas mesas grandes chávenas de chocolate quente, que agarrávamos com ambas as mãos para que o frio passasse depressa. Aí sonhávamos com os nossos heróis do cinema, esperando que chegassem no próximo comboio, por entre nuvens de fumo, muito, muito fumo, que graça poderia ter um comboio sem fumo?, heróis com os olhos do Trevor Howard, por exemplo, e nós claro, de boina vermelha levemente inclinada e o cesto das compras ao lado, que, obviamente, ele iria carregar porque é um cavalheiro, e um cavalheiro leva sempre o saco das nossas compras, e o sobretudo no braço, mas antes disso há o tempo da paixão, que começa e acaba entre um comboio que chega e um comboio que parte, com muitos violinos em música de fundo. E fumo. Nuvens e nuvens de fumo.

Um dia, sem que até hoje alguém tenha conseguido explicar a razão, o velho Leão Tolstoi fugiu de casa, apanhou um comboio, saiu dele quando já estava muito longe, e deixou-se morrer, sozinho, na pequena gare de Astapovo. Sempre me pareceu a maneira mais digna de se morrer – sobretudo, como era o caso, aos 80 anos, depois de já se terem apanhado e perdido todos os comboios essenciais de uma vida.

Mas há muito que os comboios deixaram de ser o que eram.

Eléctricos, assépticos, pontuais, demoram três horas de Lisboa ao Porto, têm fax e telemóvel, empregados solícitos que levam ao lugar a bandeja do pequeno-almoço e do jantar com aquela comida plastificada igual à que servem nos aviões. Têm homens de negócios apressados, cada um com o seu computador portátil e a sua pasta de cabedal, aproveitando o tempo de viagem para adiantar a reunião que vão ter mal o comboio chegue, para acabarem o artigo de opinião par o general de referência, para pegarem no telemóvel a pedir que esteja um carro à sua espera na estação, porque não podem perder um minuto.

Rápidos, os comboios já só param nas estações importantes. As pequenas gares desapareceram e, com elas, os pequenos restaurantes de soalhos a cheirara  sabão e cera. Nas novas gares há apenas arremedos de snack-bares, com cadeiras de plástico voltadas para o écran da televisão lá no alto, onde uma loiraça venezuelana de sotaque carioca ameaça «ainda tens de sofrer muito, Abigaíl Gusmán!»

As nuvens de fumo desapareceram também, levando com elas as paixões, os breves encontros, os olhares cúmplices sobre as chávenas de chocolate quente, as bóinas levemente inclinadas, os olhos do Trevor Howard, o sobretudo no braço, o romantismo.

Dantes, os comboios eram o prolongamento dos nossos sonhos. Hoje, são o prolongamento do nosso escritório. E as gares não passam de sala de espera onde eficientes secretárias coordenam entradas e saídas.

Se fosse hoje, o velho Tolstoi teria decerto grande dificuldade para encontrar um digno e solitário lugar de adeus.

Alice Vieira emBica Escaldada

Legenda: fotografia Shorpy Archive

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