sábado, 19 de novembro de 2016

OLHAR AS CAPAS


As Naus

António Lobo Antunes
Capa: Fernando Felgueiras
Publicações Dom Quixote, Lisboa Abril de 1988

A mulher procurou-o na teimosia pétrea dos idosos, surda a argumentos e motivos, guiada pelo olfacto da paixão. Pagou anúncios de terço de página no jornal, remexeu as conservatórias do registo civil na esperança da inexistência de uma certidão de óbito que apodrecesse sem remédio a única razão de durar de quem respirara anos sem conta na miséria das pensões, dirigiu-se a uma agência de detectives onde um cavalheiro competente, de chapéu para a testa, envernizava as unhas numa poltrona basculante. O investigador exigiu um adiantamento para microfilmes e deslocações à província, anotou hieróglifos numa margem de revista, e resmungou ao telefone ordens ladradas sem sequer estremecer a cigarrilha dos dentes. Sentada a um canto do compartimento aveludado de pó, numa cadeira que gemia dores de parto sob as nádegas, a cliente afastava a piparote uma traça seduzida pelo decote do seu vestido branco, e espantava-se de como o cavalheiro competente podia habitar, sem asma, aquela indescritível desordem de edifício derruído. Ao tornar na semana seguinte, com um decote ainda maior e mais fogoso, na ideia de se informar do progresso das buscas, deu com uma loja de caixões no gabinete de estores quebrados do Sherlock e da traça, saturada pelos eflúvios fúnebres das coroas de gladíolos e o odor das mãozinhas de cera das promessas dos doentes. Uma rapariguita séria, de gola engomada no vestido de luto, guardava o estabelecimento perto de um altar de tochas eléctricas que velavam um defunto inexistente. Ninguém se lembrava do investigador ou do insecto, e um relojoeiro sete portas abaixo, de lente crava na testa como um unicórnio amável, garantiu-lhe, uivando sob os pios desencontrados dos cucos que assomavam a janelas trabalhadas, que o comércio mortuário prosperava ali desde a fundação do bairro, e que o negócio de uma agência de investigações não passava de uma calúnia fascista destinada a desacreditar o quarteirão. A mulher, perdida no meio de ponteiros que proclamavam o dia ou a noite conforme as originalidades aberrantes dos seus mecanismos enlouquecidos, cuidou-se por momentos desmunida da bússola do juízo, adornada na areia da demência. 

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