quarta-feira, 16 de novembro de 2016

OLHAR AS CAPAS


A Peste

Albert Camus
Tradução: Ersílio Cardoso
Capa: Bernardo Marques
Livros do Brasil, Lisboa, s/d

- É isto – disse Tarrou. – Por que mostra o senhor próprio tanta dedicação, visto que não acredita em Deus? A sua resposta ajudar-me-á, talvez a responder.
Sem sair da sombra, o doutor disse que tinha já respondido; que, se acreditasse num Deus todo poderoso, deixaria de curar os homens, deixando-lhe a ele esse cuidado. Mas que ninguém no mundo, não, nem o padre Paneloux, que julgava acreditar, acreditava num Deus desse género, visto que ninguém se abandonava totalmente que nisso, ao menos, ele, Rieux, julgava estar no caminho da verdade, lutando contra a criação tal como ela era.
- Ah! disse Tarrou – é essa, então, a ideia que tem da sua profissão?
- Pouco mãos ou menos – disse o doutor, voltando para a luz.
Tarrou assobiou baixinho e o doutor olhou para ele.
- Bem sei – tornou ele – você há-de dizer que, para isso, é preciso ter orgulho. Mas eu não tenho senão o orgulho necessário, acredite. Não sei o que me espera nem o que há-de vir depois disto tudo. Para já, há doentes e é presido curá-los. Defendo-os como posso, aí está.
- Contra quem?
Rieux voltou-se para a janela. Adivinhava ao longe o mar, por uma condensação mais escura do horizonte. Sentia apenas a sua fadiga e lutava ao mesmo tempo contra um desejo de se entregar um pouco mais a este homem um pouco singular, mas que sentia fraterno.
- Não sei, Tarrou, juro-lhe que não sei. Quando vim para esta profissão, fi-lo abstractamente, de certo modo, porque tinha necessidade, porque era uma situação como as outras, uma dos que os rapazes se propõem. Talvez também porque era particularmente difícil para um filho de operário como eu. E depois foi necessário ver morrer. Sabe que há pessoas que se recusam a morrer? Já ouviu alguma vez uma mulher gritar: «Nunca!» no momento de morrer? Eu já. E descobri então que não podia habituar-me. Era novo, nesse tempo, e a minha repugnância julgava então dirigir-se à própria ordem do mundo. Depois, tornei-me mais modesto. Simplesmente, não me habituei a ver morrer. Não sei mais nada. Mas, no fim de contas…
Riex calou-se e voltou a sentar-se. Sentia a boca seca.
- No fim de contas? – disse suavemente Tarrou.
- No fim de contas… - continuou o doutor, e voltou a hesitar, olhando para Tarrou com atenção – é uma coisa que um homem como você pode compreender, não é verdade? Visto que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez valha mais para Deus que não acreditamos nele e erguer os olhos para o céu onde ele se cala.
Sim – aprovou Tarrou – compreendo. Mas as suas vitórias serão sempre provisórias, aí está.
Rieux pareceu entristecer.
- Sempre, bem sei. Não é uma razão para deixar de lutar.
- Não. Não é uma razão. Mas imagino, então, o que deve ser esta peste para si.
- É verdade – tornou Rieux. – Uma interminável derrota.

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