sábado, 10 de outubro de 2020

TIRADAS


 ... e mais uma "Tirada"...

Esta é sobre W.A. e o serviço militar.

"Algures durante este período (Nota: crise do casamento) chegou uma carta. Pressenti que poderia ser aquela oferta do Bob Hope que nunca se tinha materializado. Uma carta de uma fonte anónima é uma coisa entusiasmante e eu não podia esperar por abri-la. Afinal de contas, era um aviso para me apresentar ao serviço. Bem, podem imaginar a minha surpresa e o quanto fiquei encantado. Finalmente uma oportunidade de viver numa caserna com outros homens, tomar banho com duas dezenas de indivíduos estranhos, partilhar a casa de banho com tipos chamados Alabama e Texas, e eu seria Brooklyn. Ser despertado abruptamente às cinco e meia, fazer exercício todo o dia, acatar as ordens de um Neandertal de cabelo à escovinha e um cérebro com o comprimento de Plank. E a comida! Finalmente livre de uma dieta de lombo, lagosta, hambúrgueres no Twenty-One, e o meu Reuben's Special. Ia deixar de comer a galinha do general Tso, passando a comer o frango do general  McArthur. Ou o que quer que sirvam no exército. Naturalmente ansiava por ver ação. Por me sentar empilhado e enojado , enquanto a minha barcaça de desembarque oscilava junto à costa e eu emergia na praia sob uma saraivada de metralhadoras inimigas. As feridas, o hospital, Harold Russel. Aqui estava a minha oportunidade de ser um herói, para receber a Medalha de Honra, orgulhoso por servir o meu país.

Rapidamente contactei todos os médicos que conhecia e implorei por atestados, alegando que era fisicamente incapaz. No dia da inspeção médica apareci com toda uma variedade de álibis, que me declaravam um espécime inválido e prescreviam descanso. Pé chato, asma, visão fraca, a vesícula biliar, alergias, curvatura da coluna, hérnia do hiato, luxação no ombro, ombro enrijecido, vertigens, síndroma de Alice no País das Maravilhas. Tubo carimbado "Sem Provas" pelos médicos que me examinaram. Reduzido à derradeira entrevista com o psiquiatra, entreguei-lhe declarações que certificavam a minha psicopatologia, desde as do meu psiquiatra às do último taxista que me transportara. A situação parecia demonstrar que eu era, sem dúvida, um 1A. O médico que me examinava pediu-me que lhe estendesse a mão. Assim fiz, e estava firme e não tremia. Depois perguntou-me: "Rói sempre as unhas?". Eu não era um compulsivo roedor de unhas, mas confessei-lhe que tinha esse hábito. Ele observou-me as pontas dos dedos e, abruptamente, marcou-me como 4F. Rejeitado pelo exército por roer as unhas. Seria a primeira vez? E que sorte para os outros soldados que teriam partilhado a caserna comigo. Não teriam de dormir ao lado de um tipo que soluçaria até adormecer agarrado a um pequeno urso de pano."

 

(Pág. 111 e 112)    

Woody Allen em A Propósito de Nada

Colaboração de Luís Miguel Mira

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