sexta-feira, 3 de março de 2023

CONVERSANDO


 

No dia 26 de Fevereiro o Público publicava uma excelente entrevista, feita por Bárbara Reis,  a Maria Filomena Molder, nascida em Campo de Ourique, 72 anos, professora, filósofa, doutorada com a tese  O Pensamento Morfológico de Goethe, apreciadora de Agustina Bessa Luís, contra o Acordo Ortográfico, não tem telemóvel, nem televisão e a entrevistadora acaba por a puxar para algo que pouco ou nada aborda: a guerra, mas «um desafio é para mim sempre irresistível»  e vai dizendo:

 «Não tenho acompanhado, nem quero acompanhar a guerra, para além do mínimo possível. Como não tenho televisão, raras vezes vejo imagens, mas já aconteceu, não só imagens em directo, como também documentários de tese feitos ainda os mortos estão por enterrar (todos os dias há mortos por enterrar, não é?).

 Todo o género de interesses dos senhores da guerra e de tudo quanto se lhes associa, incluindo os meios de comunicação e quem os controla. Os turistas acham que sim, que 4000km é uma boa distância, e nós também.

 As palavras quer de Putin, quer de Zelensky são as de dois actores bem ensaiados, se bem que só um tenha estudos no ramo. Ambos são retóricos que utilizam as palavras como armas de arremesso ou como gestos de sedução. Ambos querem convencer.

 Putin tem uma escola mais elaborada, pois fez o seu tirocínio no KGB. Comparado com ele, Zelensky parece um amador, um principiante. Putin tem os traços de um espírito doente, um psicopata, como se diz na gíria do nosso tempo, um homem desprovido do sentimento de simpatia e da faculdade de comunicar de uma maneira íntima e universal, a que Kant chamava humanidade.

 Ao invés, ele está preparado para a destruição final, desde que nem um dos seus cabelos seja afectado (apesar de ele já poucos ter). Viu a série de entrevistas que Oliver Stone lhe fez? Vale a pena.

 Há uma coisa que falta a Putin e que se observa em Zelensky, a coragem. Putin não é um homem corajoso, é calculista de mais para poder exercitar essa disposição. Rodeia-se de mil protecções. Não se lembra como e onde ele esteve resguardado durante os períodos mais críticos da pandemia? Isso diz tudo sobre a sua solidariedade com o povo russo. Também tenho muita dificuldade em imaginá-lo numa reunião de conversações para pôr fim a esta guerra ou a outra qualquer empreitada em que esteja implicado.

 Por outro lado, também não vejo bem quem esteja interessado e tenha alguma ideia precisa sobre o modo de fazer acabar a guerra. Os impérios tendem a manter-se impérios até serem esfacelados por forças externas e/ou corroídos por forças internas.

 O império americano desejaria aniquilar o que resta do império russo-soviético. O que se irá passar não sei. Muitas vezes acho que a nossa vida tem uma estrutura dupla, que reproduz a dualidade da metafísica mais banal, como nos filmes do James Bond. Uma das estruturas, a que deriva da sociedade e dos seus afazeres, é manifesta e irrelevante. A outra, secreta e soberana, manobra os cordelinhos da estrutura manifesta. Como na história do burro e da cenoura ou a do jogador mecânico de xadrez de que [Walter] Benjamin fala. Neste caso, entra em cena uma relação entre história (a estrutura manifesta) e teologia (a estrutura oculta).

 Uma sociedade que quer a todo o custo evitar o acaso, a surpresa, empenhada em domesticar o desconhecido e em esconder, disfarçando-a, a violência da vida, está à mercê do medo sem fim. Com raras excepções, os meios de comunicação ajudam à festa. Heráclito achou que, para os seres humanos, a melhor coisa não é que aconteça tudo quanto querem. Será que estaremos algum dia preparados para entender isto?

 Agora a novidade radical é que os seres humanos assistem à morte em directo a milhares de quilómetros de distância, através de dispositivos técnicos de reprodução, sentados em casa ao abrigo das intempéries. Estamos no reino das imagens técnicas que se podem gravar, voltar a reproduzir, para repor mais tarde, depois do jantar. O que nos vale é a expectativa de inventar, para utilizar uma imagem com origem na guerra, espaços de manobra.

 Quanto aos 70 anos de paz na Europa, convém não esquecer a guerra sangrenta na ex-Jugoslávia e os seus horrores inabsorvíveis. Lembro-me de que em 1991 estava em Heidelberg [Alemanha] com uma bolsa do DAAD e via na televisão os transportes cheios de mulheres e crianças que acabavam de se despedir dos homens e rapazes que ficavam em Belgrado à mercê do que pressentiam e temiam. Ainda durou uns dez anos. Tanta gente morta ao deus-dará, tantas culpas por apurar, tantos interesses por esclarecer.

 Quem ganhou aquela guerra e quem ganhou com aquela guerra? Quem perdeu aquela guerra? Da emigração forçada temos notícia, pois vieram para Portugal sérvios, croatas, montenegrinos.

 Nesta guerra actual há um país invasor e um país invadido. Isso é absolutamente claro.»

 No meio da entrevista, Molder cita os poemas de Carlos de Oliveira, Descrição da Guerra em Guernica que fazem pate do livro Entre Duas Memórias,  diz que são sublimes e cita o Poema IX:

 

Casas desidratadas

no alto forno; e olhando-as,

momentos antes de ruírem,

 o anjo desolado

pensa: entre detritos

sem nenhum cerne ou água,

como anunciar

outra vez o milagre das salas;

dos quartos; crescendo cisco

a cisco, filho a filho?

as máquinas estranhas,

os motores com sede, nem sequer

 beberam o espírito das minhas casas;

evaporam-no apenas.

Por mim, saio aqui na Conversa,  mas deixo-vos uma frase imensamente batida de O Último Voo do Flamingo de Mia Couto:

«A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda.»

Dizer ainda  que esta guerra que devasta a Ucrânia, dizem os senhores da guerras não terá fim próximo.


Legenda: imagem de «Artsper Magazine.

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