quarta-feira, 1 de março de 2023

QUE ESSA PRIMAVERA ERA OUTRA

Conta-me essa história, mas esquece deliberadamente

os nomes e as datas. Diz-me que essa primavera

era outra, muito mais antiga.

e agora lembrada sem querer ou por acaso. Conta-me

 

como foi, mas evita os pequenos detalhes intranquilos.

E, dos lugares, refere apenas os mais desconhecidos

e estranhos à memória. Não fales dos perfumes, dos desejos

ou dos demónios que de noite costumam enfeitiçar o corpo

e entretê-lo. E descreve todos os gestos hesitantemente,

como se fossem mesmo de outro tempo e deles

não mais guardasses que uma lembrança vaga e desprendida.

 

Conta-me de que falaram, mas escolhe, entre as palavras,

aquelas que pudesses não ter dito. E nunca escondas,

se os houve, os pensamentos tardios que, atrás delas,

tacteariam às cegas, sem destino. Conta-me essa história, sim,

 

se achares que deve ser, que tem de ser. Mas fá-lo sempre

com quem dela esqueceu a maior parte e não consegue

lembrar-se do desfecho, final feliz ou não.

Assim escutá-la-ei até ao teu silêncio

como um romance antigo, meio lido, perdido agora

entre outros numa estante e para sempre incompleto.

As outras histórias, de amanhã ou depois,

hei-de ouvi-las inteiras: são livros por escrever,

lugares distantes, coisas por inventar no tempo

que aí vem, nomes que não se adivinham nem magoam.

 

Maria do Rosário Pedreira em A Casa e o Cheiro dos Livros

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