segunda-feira, 20 de março de 2023

SOBREVIVEMOS À GUERRA, SOBREVIVEMOS À PAZ

Sobrevivemos à guerra - sobrevivemos à paz:

 volta  e meia acreditávamos que os períodos passados

nunca mais se repetiriam

e de facto, nunca se repetiam

(mas seguiam-se um após outro),

a infância se foi para sempre,

não quis voltar a juventude perdida

e ninguém prestou contas

do nosso tempo desperdiçado.

 

Faltava-nos fé

e por isso acreditávamos em qualquer coisa

em qualquer luta falsa,

mas não em luta solitária, porque cada um de nós

que a arriscou

teve de lutar contra as sombras de ferro,

contra o algodão de ferro que o cercava,

impedia de respirar, expunha ao ridículo;

era cada vez mais difícil se mover,

o algodão das verdades mentirosas tapava nossos ouvidos,

até as pequenas esperanças tornavam-se difíceis

de se concretizar

e quanto mais depressa podíamos vencer grandes distâncias,

tanto mais tempo era preciso para o entendimento mútuo,

quanto mais longe nos aventurávamos no futuro,

tanto mais se alongava a distância de coração a coração,

quanto mais sabíamos da vida dos outros,

vivos, mortos e a nascer,

tanto menos conhecíamos a nós próprios;

meios de espasmo de massa

nos acostumavam sem dor às tragédias do mundo contemporâneo,

ainda éramos capazes  de cuidar

das nossas flores e animais domésticos,

mas temíamos até pensar que os pequenos países

são polígonos de experiência das grandes potências;

votávamos - em silêncio,

só manifestávamos nossa presença

quando nossos amadores ganhavam dos profissionais,

e então os arranha-céus tremiam com o grito:

transformavam-se em altíssimas barricadas,

que ninguém atacava,

pois há muito tinham sido conquistadas.

 

Ryszard Krynicki

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