sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O CAPITÃO DA AREIA



E de repente, não sei porquê, lembrei-me de Jorge Amado. Talvez devido a uma fotografia em que estamos ambos com Ernesto Sábato num restaurante de Paris. Sábato cansava-me por viver num drama interior perpétuo, quase teatral, uma espécie de prisão de ventre crónica da alma, de que nos dava notícia com angústia pomposa. Jorge Amado, pelo contrário, era uma bonacheirona alegria de viver. Pequeno, redondo, de voz grossa e lenta, sempre gostei muito mais dele do que dos seus livros, quase todos com demasiadas dobradiças agora. Fizemos uma viagem pelo Sul da França com Gisèle Freund, a extraordinária fotógrafa que retratou, por exemplo, Virginia Woolf e Joyce, minúscula, muito velha já, com uns olhos completamente transparentes de inteligência e ironia. Poucas pessoas, até hoje, me impressionaram tanto como essa mulher que, ao rir, parecia feita de peças que se desencaixavam umas das outras e tombavam no chão em ruidozitos musicais. Ao ficar séria apanhava os fragmentos e reconstituía-se devagarinho: havia sempre um ou dois que ficavam fora do lugar. Às vezes um braço punha-se no sítio da testa ou uma das pernas nascia-lhe das costas: Gisèle Freund era um modelo para armar composto por uma criança distraída. Só a máquina, sempre pendurada do pescoço, se mantinha intacta, a medir a gente com o único olho de coruja. Jorge Amado, esse, estava eternamente no sítio, montadinho a preceito, todo cabelo branco e duplos queixos intactos: poisava-me a palma no ombro num afeto de urso generoso. Penso que nos conhecemos quando o Fado Alexandrino saiu em França e ele me mandou uma carta com a crítica de Jean Clementin lá dentro: "Uma crítica assim, por Jean Clementin, é a glória." As cartas de Jorge Amado eram documentos espantosos: escritos num teclado que se percebia antiquíssimo e de fita gasta e corrigidas à mão com acrescentos, supressões, entrelinhas. Desprovido de inveja, nunca o ouvi dizer mal fosse de quem fosse: achava uma qualidade qualquer no maior canalha e avaliava-o por isso. Passei manhãs com ele a andar de metropolitano

(adorava metropolitanos)

de modo que me dava ideia de conhecer melhor as minhocas da Terra do que os monumentos de Paris. E acompanhava o andar das mulheres no vértice dos seus saltos com um enternecimento de avô benigno. A sua amizade estava cheia de pudor e atenção

(Que se passa com você, rapaz?)

e lá vinha a grossa palma acalmar os cães negros que dentro de mim se devoravam. Homem de grande coragem física e moral, abandonou o Partido Comunista numa honestidade admirável, que o deixou rente à miséria e sem lugar onde viver: nunca lhe escutei um lamento. E tinha o difícil dom da camaradagem limpa de cálculos. Espontâneo como um menino entregava-se sem condições: na minha ideia era irmão das suas melhores personagens: o Cabo Martim, Quincas Berro de Águia, o comandante Vasco Moscoso de Aragão, Teresa Baptista cansada da guerra ou o Mestre Manuel no seu saveiro. E estou seguro de haver sido, em tempos, o negro António Balduíno. Fosse onde fosse que se achasse era num terreiro de Mãe de Santo que morava, entre criaturas de grandes saias engomadas e cachimbo nos dentes, com a eterna roseta da Legião de Honra na lapela: dava por mim a perguntar o que pensaria Napoleão da Dona Flor e dos seus dois maridos e qual o motivo de condecorar Vadinho, o safado. Ou Quincas, que chamava à irmã gorda "saco de peidos". Ou a senhora pretensiosa que parecia "estar sentindo cheiro de merda em toda a parte". Lembro-me tanto desta frase diante de certos políticos, certos gestores, certos escritores. Gisèle Freund

(tac)

retratou a gente, o capitão da areia e eu, e o Jorge, mais idoso que o meu pai, era o mais novo dos dois. Foi o sujeito mais novo que se me atravessou na vida. Nunca iria morrer. Não morreu, claro, visto que "impossível não há". Anda para aí, vivo da costa, na farra com Quitéria de Olho Arregalado. E, qualquer dia, recebo uma carta batida num teclado antiquíssaiassimo, com dúzias de acrescentos, supressões, entrelinhas. Volta e meia filava-me o pescoço, rosnava

- Gosto de lamber meus filhotes

e puxava-me o cotovelo para o metropolitano. Quando eu voltar a Paris passeamos horas, às sacudidelas, até fazermos as estações todas, numa carruagem a abarrotar de coronéis do cacau, malandros, pivetes e raparigas da vida. E serei eu, não ele, a garantir

- És meu irmão, rapaz

separando as letras como você fazia, Jorge, no vagar

António Lobo Antunes no Quarto Livro de Crónicas, Publicações Dom Quixote, Lisboa Abril de 2011.

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