sexta-feira, 10 de maio de 2013

OLHAR AS CAPAS


O Princípio de Utopia, O Princípio de Realidade Seguidos de Ana Brites, Balada Tão Ao Gosto Popular Português &Vários Outros Poemas

Alexandre O’Neill
Moraes Editores, Lisboa, Julho de 1986

O cheiro a cera e a incenso
sobe da infância e é recordado

pelo olfacto da memória.
Há certos cheiros que persistem vida fora.
O cheiro da relva recém-cortada
frente à casa, o cheiro-maçã de esperma nos lençóis,
o cheiro dos cavalos depois duma caminhada,
o cheiro-estalido da lenha na 
lareira,
o cheiro de roupa de linho no estendal por detrás da 
casa,
o cheiro silvestre da minha primeira namorada,
o cheiro dos velhos álbuns de fotografias
(cheiro de morte,mas com cheiro de vida lá dentro)
sobretudo quando se sabe que o almirante navega
há muitos anos num mar para colorir.
Um avô almirante que eu nunca vi
numa pose de leão dos mares para a fotografia
(um cheiro a vaidade, que se perdoa tanto tempo depois,)
o cheiro da catequista da igreja de S. Jorge de Arroios
por quem eu estava apaixonado,
cheiro de castos lençóis, provavelmente os mesmos de Camilo Pessanha.
O cheiro de santidade, o cheiro de inveja
que se desprende de certa gente malina e de certos lugares aziagos
o cheiro a guarda-chuva molhado e abandonado como um pássaro morto.
O cheiro de flores apodrecidas em amarelentos solitários.
O cheiro a corpo queimado que anuncia a presença do demo
esse que vem cheirar os cheiros que são muito nossos
para roubar a memória do que fomos sendo
nos laços e lacetes da existência.

1 comentário:

namastibet disse...

Tenho a alma tosca d’um estivador,
Que tanto me dói de tão dura,
Não fosse furada por uma grossa goteira,
Não teria maneira d’achar outra dor,

E eu estimo o que por ela andei,
P’las milhas em meu redor,
Amachucando no íntimo a lei,
Que dizem que existe no país do rancor.

Lastimo estas dores ilegais,
P’lo que delas na alma ainda perdura,
Mas da pele tesa dest’estivador do cais,
Gretou apenas a branca rija salmoura,

Por dentro, ond’era mais precisa,
Permanece fluida e convive,
Comigo de forma branda, religiosa
E leve…

Tenho alma d’estivador sem terra e sem destino,
Olhos prenhos do que no mar em redor
Encerra, embarquei na noite, clandestino,
Numa caravela e posso finalmente rir sem pudor...

Por esse outro mundo afora…

Joel-matos (01/2013)
http://namastibetpoems.blogspot.com