terça-feira, 20 de janeiro de 2015

OLHAR AS CAPAS


Memorando, Mirabolando

Luiz Pacheco
Grafismo: Vitor Silva Tavares
Hors-Texte: Carlos Fernandes
Edição Contraponto, Setúbal, Setembro de 1995

O evento é-me fácil de localizar datar: o meu pousio era então Coimbra, isto nos anos cinquenta, a vender exemplares da edição Contraponto do Diálogo entre um Padre e um Moribundo, do Marquês de Sade. Preço: cinco escudos. Sade pela primeira vez em português e quase de borla. Com a PIDE à perna – e foi apreendida parte da edição – era demasiada ousadia e lucro nenhum. Andei pelas livrarias da Baixa coimbrã a fazer negócio, acho-me perto do Largo da Portagem e decido visitar o consultório de otorrino do dr. Adolfo Rocha, vulgo Miguel Torga, em Literatura. Ficava a conhecê-lo ao vivo e arrecadava 5 paus; ou talvez, até, lhe oferecesse o livrinho. Seria uma homenagem pachecal, modesta mas sincera. A saleta do consultório, muito pelintra, estava sem ninguém. Bati a uma porta que pouco depois se entreabre devagarinho, à cautela, apenas uma frincha de meio palmo e surge medonha caraça lavrada de rugas. Interrogativa, hostil.
Esboço o melhor sorriso que podia, indago:
- Miguel Torga?
- Doutor Adolfo Rocha – oiço voz cava e repreensiva.
- Pois… é o mesmo, trazia-lhe aqui uma ediçãozinha minha… do Sade… são só 5 escudos….
Nem quis ouvir nada. Baldadas as suas esperanças de que eu fosse doentinho da garganta, das fossas nasais ou que necessitasse de lavar a cera dos ouvidos, Torga-Rocha-Torga tratou de empurrar logo a porta, afastar a minha mão com o folheto, manter sigiloso, livre de estranhas criaturas sãs, aquele santuário.
Estico braço e mão, o folheto bem espetado para debaixo do nariz dele, que recua a cara, quer escapulir-se. Insisto:
- É do Sade… são só cinco escudos.

A cena, chaplinesca, durou pouco. Percebo que seri indelicado ateimar, molestá-lo assim, afinal eu era-lhe desconhecido e sabia devia prever a forretice do tipo, a sua pacóvia inconveniência. Desconsoladamente deixei-me ficar na tosca saleta, viúva de médico e doentes. Só, enraivado, meto o folheto na caixa de correio dele, para mostrar que os cinco escudos eram, ali, o menos. E dando ao diabo a homenagem pachecal e votando a todos os quintos dos infernos o sujeito mesquinho, sovina, cavernícola que fora um ídolo para mim, na minha juventude. Até àquele dia. 

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