Miguel Torga, como escritor, nunca me entusiasmou.
Não o li
exaustivamente, mas o que li nunca trouxe aquele passe de mágica que me leva a
dar um passo em frente para colocar alguém no panteão privado da casa.
Gosto mais dos
contos do que da restante obra.
José-Augusto
França desenhava-o como um transmontanocoimbrão, de muito mais mau génio que génio.
Sophia de Mello
Breyner Andresen reconhecia que Torga fala do Portugal das aldeias, da gente
que cava a terra e faz o pão, de um Portugal de que quase ninguém fala.
José Saramago
lamentou não o ter conhecido:
Não conheci Miguel Torga. Nunca o procurei, nunca lhe
escrevi. Limitei-me a lê-lo, a admirá-lo muitas vezes, outras não tanto. Foi só
de leitor a minha relação com ele. Algumas vezes, nestes últimos tempos, os
nossos nomes apareceram juntos, e sempre que tal sucedia não podia evitar o
pensamento de que o meu lugar não era ali. Por uma espécie de superstição
induzida pela pessoa que foi e pela obra que criou? Não creio. O motivo é
certamente muito mais subtil do que aquele que se poderia deduzir de um mero
balanço de qualidades suas e defeitos meus. Achava que havia em Torga algo que
eu gostaria de ter, e não tinha: o direito ganho por uma obra com uma dimensão
em todos os sentidos fora do comum, a música profunda de uma sabedoria que
nascera da vida e que à vida voltava, para não se tornarem, ambas, mais ricas e
generosas. Que Torga não era generoso, dizem-no. Mas eu falo de outra
generosidade, a que se entranha nesse movimento de vaivém que em raríssimos
casos une o homem à sua terra e a terra toda ao homem.
Demasiado cedo morreu Miguel Torga. Compreendo agora
quanto gostaria de tê-lo conhecido. Demasiado tarde.
A morte, no seu Diário, é uma
constante dos últimos anos de escrita:
15 de Fevereiro de 1979
Apostei na vida e perdi. Acreditei nela piamente,
tentei ser-lhe fiel de todas as maneiras, e chego ao fim na triste convicção de
que, afinal, foi tudo inútil, e que apenas cheguei ao desespero de nada poder
distrair-me da evidência da minha morte.
25 de Outubro de 1979
Não. Nunca hei-de escrever a última página. Ficará
sempre uma inédita na minha aflição.
29 de Julho de 1984
O meu drama foi viver a vida a dar passadas firmes e
irreversíveis a duvidar sempre de mim.
25 de Dezembro de 1984
Deus. O pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem
de o negar, mas nunca a força de o esquecer.
4 de Fevereiro de 1986
Beber estoicamente até à última gota o cálice de
amargura da vida. É o meu ponto de honra.
3 de Abril de 1988
Despeço-me da casa paterna, do jardim, do negrilho e
das fragas. Das únicas riquezas que gostei verdadeiramente de possuir no mundo,
e de que sou avaro. Que não tive de ganhar, mas de merecer.
14 de Junho de 1988
É terrível, a morte. Tira sentido às palavras, aos
gestos, ás lágrimas, ao silêncio Deixa a vida sem expressão.
22 de Fevereiro de 1989
Vivi duas vidas. Uma, desalentado, a ver-me morrer,
outra a lutar inconformado contra todas as mortes.
15 de Abril de 1991
O mais trágico na velhice doente é vermo-nos morrer
antecipadamente no cansaço e no enfado de quem nos rodeia.
29 de Abril de 1991
Durei o suficiente para tirar todas as provas reais à
minha natureza. A mais difícil e concludente é esta em curso. O meu pendor
religioso nem perante o sofrimento atroz em que agonizo cede à tentação dum
qualquer alívio beato. Continuo fiel à realidade de ser uma pobre criatura
transitória de barro, sem apetência instintiva da bênção redentora de qualquer
graça providencial solicitada. Morro roído de dores, na perplexidade de sempre,
a consciencializar maceradamente a extensão dos meus erros e falências, sem me
perdoar de ter sido excessivo em tudo, e deixar o mundo triste e desiludido de
mim, a olhar complacentemente os felizes que compram com a renúncia à lucidez,
a ilusão da sobrevivência eterna num outro mundo anestesiado.
28 de Novembro de 1991
Às duas por três, sinto a tentação de registar
miudamente estas horas de agonia. Mas tenho de me render à evidência. A caneta
cai-me da mão aos primeiros rabiscos. E ainda bem. Nasci para cantar a glória
da vida e não para cronista da humilhação da morte.
27 de Agosto de 1993
Envelhecer não é para covardes. E, morrer muito menos.
Corajosamente, envelheci, e corajosamente morro, ou vivi sempre em pânico, com
medo de o não ser?
10 de Dezembro de 1993
Requiem por mim
Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
Miguel Torga, após longa e dolorosa doença, morreu, em Coimbra, no dia 17 de Janeiro de 1995, tendo sido sepultado, em campa rasa, em São Martinho
de Anta, e, em sua homenagem, ao lado, plantaram uma
torga, planta brava
da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da rocha, de flor branca,
arroxeada ou cor de vinho, com um caule incrivelmente rectilíneo e que originou o
seu pseudónimo.
Legenda: Esta
fotografia de Miguel Torga, em Trás-os-Montes, foi tirada do livro
Miguel Torga de José de
Melo, Editora Arcádia, Lisboa, Junho de 1960.
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