Em princípios de 1959 eu havia editado o livro de Mário Sacramento Fernando
Pessoa, Poeta da Hora Absurda. Tinha um mandado de captura às costas e resolvi
laurear por Itália antes de ir meter o corpinho no saudoso Limoeiro. Fito
longínquo e mais que utópico dessa viajata: o Egipto. Porém, tendo atingido o
cume do Vesúvio, achei que ir ver as pirâmides me era coisa desnecessária, a
obra da Mãe Natura incomparável confrontada com a trabalheira suada dos
escravos dos faraós e sua soberba de deixarem rastro de si, por todos os
séculos dos séculos, em formato múmia e mausoléus labirínticos. Regressado a
Portugal, fui (como era de prever) preso daí a escassos meses. No imediato,
tinha uma história para ouvir e que relato agora, tal como ma contaram, visiono
a trinta anos distantes. Quem ma contou, com a maior naturalidade, foi a Maria
do Carmo, sertaneja de pêlo na venta, minha companheira de casa, cama e
pucarinho.
Era assim: na minha ausência em Roma, aparecera na Rua
Jorge Colaço, ali ao Pote d’Água, onde então residíamos, um senhor vindo de
Aveiro à minha procura. Apresentara-se: dr. Mário Sacramento. A rapariga,
semianalfabeta, não sabia quem ele era, nunca ouvira, aquilo era um mistério. O
Mário Sacramento, desejando por certo completar a sua identificação, há-de ter
falado do livro recentemente publicado; terá insistido que era ele o autor do
Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda. Não resultou melhor. Ou sim: à Maria do
Carmo, "Fernando Pessoa" e "horas surdas" (fez-lhe mesmo
certa espécie, horas surdas, e confessou-mo quando do seu raconto), algo, todavia,
lhe remexeu o bichinho do ouvido com a referência. Semanas antes, houvera uma
chuva de vales do correio, de assinantes pagantes da obra, tínhamos festejado a
assiduidade do carteiro à nossa porta com umas almoçaradas reais. E se ela
comia bem! Já o Salazar repetia, em Conselho de Ministros: o que interessa é
dinheirinho! Beirã como ele, a Maria do Carmo não esquecera o acelerado
movimento de comestíveis naquele apartamento do Pote d’Água, à custa desse tal
Pessoa – isso já era outro falar! E, com respeito ao desconhecido visitante,
ali presente insistente, que fazer? Acudiu-lhe uma ideia salvadora:
– Quem deve saber disso tudo é a minha comadre, a
Natália Correia! Vamos a casa dela.
Foram. E continuo a imaginar o cenário. O Mário
Sacramento não podia ignorar quem era a Natália. Se ainda a não conhecia
pessoalmente, haveria de ter a maior curiosidade, bisbilhotar o seu celebrado
"salão". Meteram-se no carro e foram à Rua Rodrigues Sampaio, por
cima da Smarta. A rapariga bateu à porta e como conhecia bem os cantos à casa,
entrou por ali dentro aos brados: Ó Natália, ó Natália, está aqui o senhor
Fernando Pessoa!
A Natália Correia, além das inúmeras virtudes,
públicas e privadas, que lhe apontam (merecida ou imerecidamente: ainda que sem
o menor fundamento – tudo fumaça!, é outro assunto), lembro que, naquele tempo,
uma das suas tendências era coleccionar celebridades no seu "salão".
Ali tive o gosto de conhecer o Ionesco, o Henry Miller e muitos outros nomes
grandes, de passagem por Lisboa. Era um "salão" cosmopolita a sério e
as vitualhas, os vinhos deliciosos que vinham do Hotel Império honravam a
gentileza dos anfitriões, a Natália e o esposo, o meu grande amigo Alfredo
Machado.
Quando ouviu a gritaria da Maria do Carmo, a Natália
(é-nos permitido supor) sentiu um baque, arrepiou-se toda perante o indizível
fenómeno: teria Fernando Pessoa reincarnado, escolhendo precisamente o seu
"salão" para surgir em Glória aos seus admiradores, Lisboa revisitada
via Natália? Que sensação, que atractivo formidável para o sarau dessa noite. E,
sem tardança, num alvoroço adolescente, desvairada correu para a porta.
Nunca vi o dr. Mário Sacramento, apenas fotos suas nos
jornais. Durante a atribulada edição do livro, que demorou anos, apenas nos
correspondíamos por carta e ele tanto me remetia o original e provas de Aveiro
como do Forte de Caxias, nas muitas perseguições que a PIDE lhe moveu. Nada
nele, nas fotos, fazia lembrar o Pessoa (das fotos, também): face bolachuda,
cheia de bonomia (e melancolia, também) em Mário Sacramento opondo-se ao físico
raquítico, hálito ardente dos bagaços, miopia aguda, bigodito fininho do
Pessoa, tal como o João Botelho me mascarou no filme Conversa Acabada em três
breves aparições, feito (eu) Pessoa moribundo e logo esticado, com o Manuel de
Oliveira, padreca, a rezar-me o responso, num latim engosmado.
Quando a Natália esbarrou com a figura do Mário
Sacramento à soleira da porta, já ele devia estar chateadíssimo, ouvira a Maria
do Carmo anunciá-lo como Fernando Pessoa. De que modo teriam deslindado aquela
grotesca maralha? De todo em todo o ignoro. Diverti-me, passados tantos anos, a
recordá-lo e não podendo ocultar-me a ingenuidade de ambos: o Mário, no
completo desconhecimento de que eu era um editor marginalíssimo e que detesto
figuronas intelectualóides para a convivência doméstica, na cama e à mesa; e,
por 1959, já estava falido, nas derradeiras proezas com os prelos, inda por
cima com a polícia dos costumes em batida na minha cola; a Natália, com o
sôfrego anseio que o Pessoa…ele há cada lembrança!
Nunca falei ao José Saramago neste episódio, portanto
ninguém queira ver na sua portentosa concepção de O Ano da Morte de Ricardo
Reis, pondo um Pessoa a passear-se dos Prazeres ao Chiado, a palrar com outra
sombra, a do Ricardo Reis, um resquício ou sugestão dele. Mais uma vez, porém,
a realidade (por escassos segundos, embora) terá excedido (na mente da Natália,
sempre fantasiosa e crédula) a ficção. Ou a Vida imitando a Arte, é como se
queira interpretar.
Luiz Pacheco em Memorando, Mirabolando
Legenda: Capa do
livro Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda, publicado por
Contraponto/Luiz Pacheco.
Imagem tirada de
Luiz Pacheco 1 Homem Dividido Vale por 2
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