quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

DIMANCHE À ORLY


Os aviões estavam guardados para os domingos de Verão, quando o futebol estava no chamado defeso e não havia jogos.

A vida do avô, a dele também, regulava-se por haver, ou não, jogos no Estádio da Luz.

Na Praça do Chile, apanhávamos aqueles autocarros verdes, de dois andares, para a Portela e ali ficávamos a ver os aviões.

O aeroporto não era o que hoje é e, mais uns anos, pelo andar da carruagem, não será mais, e o movimento de aviões era diminuto.

No edifício havia uma esplanada, com grandes chapéus-de-sol, que se via cá de baixo, do gradeamento que limitava a pista. Adivinhavam-se mulheres com vestidos vaporosos às ramagens, homens de fato e gravata, a beberem o seu chá, o seu café, a sua limonada ou o seu whisky, pensa ele.

Cá em baixo, famílias em grupo passeavam-se à espera de ver os aviões subir ao céu, ou dele descer ,e havia mulheres a vender, em cestos de palha trançada, com uma asa ao meio, em cartuchinhos de papel, tremoços, amendoins, também colares de pinhões, alfarroba, paladares.

Por tudo isto – e não só – haveria um dia de passar a gostar, terna e nostalgicamente, de uma canção do Gilbert Bécaud: Dimanche à Orly. Ainda hoje, quando a ouve, é do avô e dos domingos da Portela que se lembra, e, não raro, uma lágrima atrevida, furtiva lágrima, intenta brotar.

Pelos idos de 1969 viu um anúncio de jornal a pedir pilotos para a TAP. O anúncio dizia: «Há homens que não suportam estar colados ao chão, esses serão os nossos pilotos. Oferecemos-lhe dezenas de céus. E dezenas de terras. Oferecemos-lhe um viver cheio de à-vontade dentro da responsabilidade. Sem e com experiência de voo venha para piloto da TAP.»

Aquele chamamento de quem não suporta estar colado ao chão, sem e com experiência, fez-lhe desejar ir para piloto da TAP, mas as habilitações literárias eram o busílis da questão.

Passados anos conheceu quem tivesse ido para piloto da TAP por causa da feliz frase de marketing daquele anúncio. Era, então, a TAP um exemplo de companhia aérea. Hoje é a javardice que se sabe.

Lembra-se também de uma velha canção de Milton Nascimento de saudação à Panair do Brasil, assim como se lembra de, na Portela, ver esses aviões da Panair. Agora chama-se Varig. Ou chamou-se.

E aquela briga e aquela fome de bola
E aquele tango e aquela dama da noite
E aquela mancha e a fala oculta
Que no fundo do quintal morreu
Morri a cada dia dos dias que eu vivi
Cerveja que tomo hoje é apenas em memória
Dos tempos da Panair
A primeira Coca-Cola foi me lembro bem agora
Nas asas da Panair
A maior das maravilhas foi voando sobre o mundo
Nas asas da Panair.

Não foi para piloto da TAP, mas mais tarde haveria de trabalhar numa agência de navegação e foram tempos felizes: barcos, escadas de portaló, marinheiros, gruas, cabos grossos esticados até aos cabeços da muralha, azáfama de estivadores, gruas, aquela dança serena do barco com as águas e, sempre, aquele ruído de motor que mantém o barco vivo e se transforma num doce e angustiante apelo.

E assim aconteceram os comboios, os barcos, os aviões, tal como na canção dos Box Tops.

Às voltas e voltas, andou pela casa à procura do EP que tinha a canção Diamanche à Orly do Bécaud, mas não encontrou. A memória traz-lhe uma brisa longínqua de que o disco alguém o levou e não devolveu. Nada a fazer. Hoje consegue ter a diplomacia suficiente para não lamentar muito o sucedido. Aliás, nunca teve grande simpatia pela propriedade privada.

A capa do EP do Bécaud é retirada da internet.

1 comentário:

Seve disse...

Ainda me lembro daquela: Cheguei a horas ao Aeroporto mas disseram Panair e eu não fui...