domingo, 7 de fevereiro de 2021

FAREWELL HAPPY DAYS I


Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente

A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888.

A esse sítio acorrem então, aflitíssimos, o teu vago sorriso

e a vaga maneira como dizes os esses;

vêm de muito longe e chegam incompletamente

ao pequeno vulnerável sítio entre

toda a minha vida e toda a minha morte,

quando a minha última recordação atirou já com a porta

e tudo está acabado até a tua respiração

na cama ao meu lado,

e também tu estás morta,

duma forma que já não me importa.

 

Vamos então os dois outra vez

ao longo de certas ruas sombrias e de certos dias

e sorris e falas alto; está calor mas tens as mãos frias,

compramos coisas, visitamos

talvez algum último amigo

sem sabermos que eu já não estou vivo.

 

Poderia ter sido de outro modo?

Poderiam ter sido outras duas pessoas

vivendo a minha e a tua vida, morrendo a minha e a tua morte?

(Mesmo o armador, poderia ter sido outro?)

Aparentemente foi por pouco;

se fosse um pouco mais tarde ou um pouco mais cedo,

se eu não tivesse chegado a casa cansado,

se a louça não estivesse por lavar

e a janela da sala de jantar

não estivesse fechada, se o mundo não tivesse acabado,

nem tu tivesses ido ao supermercado,

e se eu não estivesse cheio de medo.

 

Agora estou voltado para cima,

para onde cantas ainda há muito tempo.

Se calhar isto (alguma coisa) vai demorar mas já não me impaciento.

Voltamos, tu e eu, ao mesmo jardim desflorido

onde eu morro sozinho

e conversamos comigo

como com um desconhecido.

Que diremos agora um ao outro?

É tarde. Ainda há um momento

me apetecia conversar, agora estou outra vez tão cansado!

Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado,

como se fosse pelo lado de dentro?

 

Manuel António Pina em Poesia Reunida

 

Legenda: fotografia de Edith Claire Gérin

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