Durante muitos anos
persegui os livros de poemas de Margarida Ferra editados pela &Etc., sem
nunca os encontrar.
Numa conversa com o Vitor
Silva Tavares falei-lhe nisso. Deu uma volta por onde pensou existirem ainda,
mas sem sucesso.
Em Março de 2014 tomei
conhecimento de Margarida Ferra.
É este o texto de hbmf lido
na Antologia do Esquecimento:
«Enquanto lia Sorte de Principiante (&etc, Novembro de 2013),
lembrei-me de uma canção de Sérgio Godinho intitulada Dias Úteis. Começa
assim: «dias úteis / às vezes
pretextos fúteis / pra encontrar felicidades / no percurso de um só dia».
E já no final, canta-se: «Por
pretextos talvez fúteis / a alegria é o que nos torna / os dias úteis / Por
motivos talvez claros / o prazer é o que nos torna / os dias raros». Os
poemas de Margarida Ferra (n. 1977) afinam pelo mesmo diapasão, com um ritmo
compassado onde a experiência dos “dias úteis”, invocados a páginas 31,
solicita cogitações e exercícios reflexivos de ordem desigual. A prosa
introdutória intitulada Coisas quentes a baixas temperaturas dá o
mote, oferecendo aos leitores de poesia referências familiares. «Mistura o que quiseres», escreve
Margarida Ferra, como escrevia o livreiro da Poesia Incompleta quando expunha
nos escaparates do seu weblog livros de autores com linguagens
diversas (senão mesmo divergentes). Apesar de se dirigir a uma segunda pessoa,
este texto funciona como uma arte poética que guiará a versificação
subsequente: «Não espreites
perfis. Mistura o que quiseres, podes ser duas pessoas ou mais: vender e ser
vendido, escrever biografias e cortá-las até terem duas linhas - uma delas pode
ser tua, os outros relatos também são falsos. Ouve e copia sotaques alheios,
como se a tua família fosse outra. Mistura o que quiseres, não expliques, não
te queixes, cita sem saber quem citas. Escreve sempre que precisares».
(p. 9) O tom recomendativo, que se repete em alguns poemas, por vezes sob a
forma de receita, falível como todas as receitas, não deve iludir-nos. Na realidade,
ele dissimula uma insegurança que nada tem que ver com a eventual elevação do
sujeito poético face aos seus leitores. Dirigindo-se a outrem, é a si mesmo que
se dirige - numa clara renúncia do biografismo que contamina os
versos e do confessionalismo que fica sempre aquém da complexidade
existencial. A autora protege-se, deste modo, de eventuais confusões entre o
texto enquanto expressão do Eu, fixado num tempo e num espaço específicos, e o
Eu enquanto edifício mais ou menos estável, singular, em construção permanente
até à hora da morte. Pertinente, pois, até pelo movimento que sugerem, a
divisão dos poemas em três conjuntos: Poemas do Início, Poemas do
Meio, Poemas do Fim, todos eles numerados e apenas por três vezes
intitulados (Escreve sempre que precisares, Leio menos do que penso, Não
te iludas). Reproduzo os títulos por duas razões: 1.ª tornam perceptíveis a
alternância entre o discurso na primeira pessoa e o discurso dirigido a uma
segunda pessoa (que, como disse, não suprime a primeira); 2.ª relevam a
importância do texto introdutório, chão sobre o qual os poemas despontam e se
desenvolvem. Prescrições, instruções, "receituários" são, neste
contexto, formas engenhosas de exprimir um esforço de autoconhecimento onde se
notam inquietações íntimas e uma certa desarrumação emocional, porventura
geradas pelas rotinas da vida doméstica, pelo “tédio”, pelo sedentarismo, pelo
adiamento das rupturas ou de acções menos convencionais (ou mesmo por uma certa
solidão que advirá da incapacidade de reconhecer a singularidade de um ser
esbatido entre multidões): «Apaixonei-me
todas as vezes / e ainda assim foram insuficientes / para a idade e dedos que
tenho. // Conduzo a alta velocidade, / ignorante dos radares. / Foram pelo
menos quinze, / os túneis até hoje. // Escapei ilesa. Frases mal pronunciadas,
/ suspiros demasiado presentes, / uma t-shirt usada em excesso / em dias de
sono longe, / memórias inesperadas, / longas páginas de prosa, / poesia,
jornalismo e catálogos / de venda postal / têm-me salvo com frequência / do
abismo. // Ensinavas-me a viver longe e / podia acreditar em ti, / se me
chamasses / assim e outros termos vulgares, / entre dois vídeos. Só que ninguém
/ enfrenta a câmara / antes do próximo semáforo» (pp. 16 - 17).
Exemplar no desafio que coloca a si próprio, este poema traduz a paisagem do
conjunto. Nas entrelinhas, o que torna os dias úteis e respiráveis. Mas também
o que os torna fúteis e (até ver) suportáveis».
A Música pela Manhã de hoje é a canção do Sérgio Godinho, que veio à memória do hmbf enquanto lia Margarida Ferra, um mágico de palavras e músicas, dos mais brilhantes autores/cantores que temos por aqui.

Sem comentários:
Enviar um comentário