segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

SOPA DE PEDRA

Desfaçam uma batata, depois de bem

cozida, num prato de água quente. Não ponham

sal, que faz mal à saúde, nem azeite, que

está caro. Partam a côdea aos pedaços e

deitem-na no prato. Se houver ervas à volta,

nem que sejam urtigas, também servem

para dar sabor. Se não houver, pensem

nelas, e juntem-lhe a memória de uma rodela

de chouriço. Mas não muito, porque até

a memória está pela hora da morte. Depois,

soprem na sopa: não vale a pena comê-la

muito quente, o sabor perde-se no queimado

da língua. Comam as côdeas de pão com

tempo e proveito: é pão que já tem uns

dias, e que deveria ter sido lançado

aos pombos, mas os pombos já foram

comidos por quem se apressou a

apanhá-los. E depois do pão, passem

ao caldo: e comam devagarinho, mesmo

que já esteja frio. E quando acabarem,

consolem-se com um único

pensamento: amanhã pode

não haver mais!

Nuno Júdice em O Fruto da Gramática

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