domingo, 19 de fevereiro de 2023

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 A Aida quis reler A Terra do Pecado mas o livro, comprado há muitos e muitos anos num alfarrabista, oferece poucas garantias para ser lido sem se desfazer. Houve que comprar um novo exemplar, edição da Porto Editora, Fevereiro de 2020, caligrafia do título na capa da autoria de José Luís Peixoto.

O livro tem um Aviso, escrito por José Saramago, sem indicação de data. Com toda a certeza, quando Saramago o escreveu, não o teria escrito em acordês.

Provavelmente, nunca saberei das razões que levaram a editora, ou os herdeiros de Saramago, a publicar os livros do Nobel Português, fora da ortografia utilizada pelo autor.

É o Sublinhado Saramaguiano de hoje:

«O autor é um rapaz de vinte e quatro anos, calado, metido consigo, que ganha a vida como praticante de escrita nos serviços administrativos dos Hospitais Civis de Lisboa, depois de ter estado a trabalhar durante mais de um ano como aprendiz de serralharia mecânica nas oficinas dos ditos hospitais. Tem poucos livros em casa porque o ordenado é pequeno, mas leu na Biblioteca Municipal das Galveias, tempos atrás, tudo quanto a sua compreensão logrou alcançar. Ainda estava solteiro quando um caridoso colega da repartição, segundo-oficial, de apelido Figueiredo, lhe emprestou trezentos escudos para comprar os livrinhos da coleção «Cadernos» da Editorial Inquérito. A sua primeira estante foi uma prateleira interior do guarda-louça familiar. Neste ano de 1947 em que estamos nascer-lhe-á uma filha, a quem medievalmente dará o nome de Violante, e publicará o romance que tem andado a escrever, esse a que chamou A Viúva mas que vai aparecer à luz do dia com um título a que nunca se há de acostumar. Como no tempo em que viveu na aldeia já havia plantado umas quantas árvores, pouco mais lhe resta para fazer na vida. Supõe-se que escreveu este livro porque numa antiga conversa entre amigos, daquelas que têm os adolescentes, falando uns com os outros do que gostariam de ser quando fossem grandes, disse que queria ser escritor. Em mais novo o seu sonho era ser maquinista de caminho de ferro, e se não fosse por causa da miopia e da diminuta fortaleza física, imaginando que não perderia a coragem entretanto, teria ido para aviador militar. Acabou em manga de alpaca do último grau da escala hierárquica, e tão cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em que trabalha, ao lado da prensa das cópias. Não sabe dizer como lhe veio depois a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que de Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe o menos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar. Também não sabe explicar por que foi que escolheu a Parceria António Maria Pereira quando, com notável atrevimento, sem padrinhos, sem empenhos, sem recomendações, se decidiu a procurar um editor para o seu livro. E ficará para sempre como um dos mistérios impenetráveis da sua vida haver-lhe escrito Manuel Rodrigues, da Editorial Minerva, dizendo ter recebido A Viúva na sua casa por intermédio da Livraria Pax, de Braga, e que passasse ele pela Rua Luz Soriano, que era onde estava a editora. Em momento nenhum ousou o autor perguntar a Manuel Rodrigues por que aparecia a tal Pax metida no caso, quando a verdade é que só tinha enviado o livro à António Maria Pereira. Achou que não era prudente pedir explicações à sorte e dispôs-se a ouvir as condições que o editor da Minerva tivesse para lhe propor. Em primeiro lugar, não haveria pagamento de direitos. Em segundo lugar, o título do livro, sem atrativo comercial, deveria ser substituído. Tão pouco habituado estava o nosso autor a andar com tostões de sobra no bolso e tão agradecido a Manuel Rodrigues pela aventura arriscada em que se ia meter, que não discutiu os aspetos materiais de um contrato que nunca veio a passar de simples acordo verbal. Quanto ao rejeitado título, ainda conseguiu murmurar que iria tentar outro, mas o editor adiantou-se, que já o tinha, que não pensasse mais. O romance chamar-se-ia Terra do Pecado. Aturdido pela vitória de ir ser publicado e pela derrota de ver trocado o nome a esse outro filho, o autor baixou a cabeça e foi dali anunciar à família e aos amigos que as portas da literatura portuguesa se tinham aberto para ele. Não podia adivinhar que o livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autor de A Viúva.

Sem comentários: