sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

POSTAIS SEM SELO


Nós formamos a maior parte das nossas ideias, e, frequentemente, as mais justas, através dos livros.

Julien Benda 

OLHAR AS CAPAS


Balzac por ele Próprio

Gaetan Picon

Tradução: Daniel Gonçalves

Colecção Escritores de Sempre nº 1

Portugália Editora, Lisboa, Junho de 1969

Balzac é o criador da Comédia Humana. Balzac e o senhor Honoré de Balzac setão sido a mesma pessoa? Entre a personagem que os acontecimentos da sua vida, os depoimentos dos seus íntimos e a sua correspondência nos permitem entrever, e o ser lendário que o ruído de forja da sua Comédia Humana nos faz sonhar, que distância!

ROBERTA FLACK (1937-2025)


Ei-los que partem, estão todos a partir…

Depois dizemos que as lendas partem, mas ficam os livros, as músicas, os filmes, mas não sei bem porquê – ou sei? – fica sempre o que quer que seja, algo parecido como uma melancolia angustiante…

RobertaFlack deixou-nos na passada segunda-feira.

Cantora, pianista, chegou a aproximar-se da música clássica mas, para ganhar a vida, acabou a cantar em clubes de Washington.

Em 2022 revelou que sofria de esclerose lateral amiotrófica, e agora partiu.

Como ela canta em Conversation Love, é preciso atirar reflexões tristes ao vento que é onde elas pertencem e que toda a dor tem de encontrar o seu espaço.

No LP  Killing Me Softy, a segunda faixa do Lado 2 é «Conversation Love» que Roberta dedica a Rabsaan Roland Kirk:

«Throw sad reflections to the wind where they belong

Surprising things will rise to the top
And hand-painted dreams flow
All of the pain has to go and find a space
For love will come and take its place

Full time illusions always hurt you in the end
And haunting ghosts can replay their part
To keep tender smiles down
Don't let them turn you around
The answer's clear your love has always been right here.»

Legenda: pormenor da capa do LP Killing Me Softy que pertence à Biblioteca da Casa, comprado em 31 de Março de 1977.

NOTÍCIAS DO CIRCO

Pedro Tadeu perguntava, ontem no Diário de Noticias:

«Podemos confiar nos políticos com imobiliárias?»

Não, não podemos, e temos sempre aquele travo amargo de, também, não podermos confiar nos políticos.

Enquanto ministro, Cavaco Silva disse um dia:

"Para serem mais honestos do que eu têm que nascer duas vezes".

 Para depois virmos a saber o que se passou com o BPN para além de afirmar  que o BES, já em falência, era um banco em que os portugueses podiam investir.

Há breves semanas, o primeiro-ministro, na Assembleia da República, acossado por uma moção de censura colocada por «aquela coisa», disse quase o mesmo e, hoje o Expresso coloca na primeira página que «O grupo Solverde paga à empresa da família de Luís Montenegro, a Spinumviva, uma avença mensal de 4500 euros desde julho de 2021 a troco de um conjunto de “serviços especia­lizados de compliance e definição de procedimentos no domínio da proteção de dados pessoais».

PELO SILÊNCIO NA PLANÍCIE

Pelo silêncio na planície pela tranquilidade em tua voz
pelos teus olhos verdes estelares pelo teu corpo líquido de bruma
pelo direito de seguir de mão dadas na solidão nocturna
lutaremos meu Amor
Pela infância que fomos pelo jardim escondido que não teve o nosso amor
pelo pão que nos recusam pela liberdade sem fronteiras
pelas manhãs de sol sem mácula de grades
lutaremos meu Amor

Pela dádiva mútua da nossa carne mártir
pela alegria em teu sorriso claro pelo teu sonho imaterial
pela cidade escravizada pela doçura de um beijo à despedida
lutaremos meu Amor

Pelos meninos tristes suburbanos
contra o peso da angústia contra o medo
contra a seta de fogo traiçoeira cravada
em nosso doce coração aberto
lutaremos meu Amor

Na aparência sozinhos multidão na verdade
lutaremos meu Amor

 

Daniel Filipe em A Invenção do Amor e Outros Poemas

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

POSTAIS SEM SELO


Lembro-me de um tipo, não sei se era Locke ou Hobbes, de quem o Eduardo Prado Coelho dizia que a sua maior obsessão era o medo. A minha é a felicidade. Sobretudo agora, que já estou velho de mais para ser outra coisa senão feliz.

Manuel S. Fonseca

Legenda: Manuel S. Fonseca

OLHAR AS CAPAS


Confissões dum Poeta

Paul Verlaine

Tradução, Introdução e notas: Cabral do Nascimento

Colecção Documentos Humanos nº 6

Portugália Editora, Lisboa s/d

E assim, nem bem nem mal, decorreram as coisas… até à chegada a Paris, em Outubro de 1871, de Arthur Rimbaud, de quem minha mulher teve logo um ciúme absolutamente injustificado – nesse tempo – quanto ao sentido torpe que ela pretendia dar-lhe… Não se tratou, de começo, nem sequer de afeição, de simpatia, fosse de que natureza fosse, entre duas naturezas tão diferentes como eram a do poeta dos Assis e a minha, mas sim de admiração e surpresa perante esse garoto de dezasseis anos que já escrito – como bem disse Fénéon – coisas «talvez superiores à literatura».

GENE HACKMAN (1930-2025)


 Morreu Gene Hackman.

As grandes lendas do cinema continuam a partir.

 Legenda: Gene Hackman num enorme filme de Francis Ford Coppola: O Vigilante

O SOL DO MENDIGO

Olhai o vagabundo que nada tem
e leva o Sol na algibeira!
Quando a noite vem
pendura o sol na beira dum valado
e dorme toda a noite à soalheira...
Pela manhã acorda tonto de luz.
Vai ao povoado
e grita:
- Quem me roubou o sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios
rosnam:
- Que grande bebedeira!

E só à noite se cala o pobre.
Atira-se para o lado,
dorme, dorme...

E toda a noite o sol o cobre...

Manuel da Fonseca de Rosa-dos-Ventos em Poemas Completos

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Naquele tempo, se houvesse a iniciativa que agora nos acompanha, «Aqui, posto de Comando do Movimento das Forças Armadas», esta seria a frase do ano de 1974.

Mesmo para aqueles que quotidianamente vão dizendo nos transportes públicos, nas filas das caixas: «o que nos faz falta é um outro Salazar!...»


Esta colecção que, meritoriamente, o jornal Público, todos os dias 25 de cada mês, nos tem vindo a presentear (cada volume custa 11,90 euros), conhece, neste Fevereiro o seu número 4.

Rigorosamente a não perder!

Legenda: pormenor de uma das fotografias tirada da pág.13 da Documentação Fotográfica. Numa qualquer pausa do dia glorioso, um militar lê o «República» dando conta dos últimos acontecimentos.

OLHAR AS CAPAS


Portugal: Ano Um da Revolução

Josué da Silva

Fotografias: José Tavares, Álvaro Tavares, José Teixeira

Capa. Rodil Garcia

Colecção: 25 de Abril, Os Dias da Revolução nº 4

Edição Fac-simile Edições Dâgá, Lda/Jornal Público, Lisboa, Fevereiro de 2025

Magazinesco, folhetinesco – mas de jornalismo vivo, autêntico e verdadeiramente informativo, nada. Como se ao povo português não lhe interessasse os seus problemas, que não eram poucos, nem faltos de profunda gravidade. Era, no entanto, desta forma… informe, que sobrevivia a Imprensa nacional, desde há quase cinquenta anos. Até àquela madrugada…

OS ITINERÁRIOS DO EDUARDO

O Itinerário de hoje do Eduardo percorre as páginas do Cinéfilo, no tempo em que Abril estava quase a rebentar. Trata-se do nº 26 de 30 de Março de 1974 e os pés do Eduardo encaminharam-no para o velho Coliseu dos Recreios nas Portas de Santo Antão para ver e ouvir Patxi Andión, um basco de quem as esquerdas em Portugal gostavam muito, começando por mim que lhe fui colecionando primeiro os singles e depois os LPs. Sem perceber absolutamente nada, comprei-lhe o LP Joxe María Iparraguirre Patxi Andion’ en era.

Patxi Andion foi revelado em Portugal em 1969, pelo programa Zip-Zip.

Das duas primeiras vezes que tentou cantar em Portugal, a PIDE expulsou-o do país. Acabou por actuar pela primeira vez em 24 de Novembro de 1973

Em Portugal actuou pela primeira em 24 de Novembro de 1973 no Cinema-Teatro Monumental, a segunda vez em 24 de Março de 1974. Em ambos, dezenas e dezenas e dezenas e dezenas de agentes da PIDE foram ouvindo o que ele tocava e dizia.

«A minha relação com Portugal, a música e a língua portuguesa é de absoluto amor, é uma paixão que existe desde a década de 1960», disse em entrevista à Lusa, já Abril por aí andava.

Ele que sempre disse que uma canção se constrói com palavras e música, mas o que verdadeiramente tem uma função, são as palavras, que entende que os poemas não são herméticos, pois a canção primeiro sente-se e depois entende-se, claro que uns entendem melhor do que outros mas em definitivo todos sentem, ele que se diz um tipo que trabalha arduamente naquilo que sabe e pode fazer, e lembra sempre o avô que lhe costumava dizer que falar é demasiado importante para o fazermos continuamente porque quem fala muito, necessariamente, terá de dizer muitas asneiras.

Chegou a dizer: «Já não me tratam em Espanha tão mal como antes. Passei toda a fome que podia passar, fizeram-me todo o mal que podiam fazer. Mas eu não desisti. Segui lutando, fazendo o mesmo. E no fim, as pessoas viram; aquele tipo não faz aquilo por modo, mas porque quer, porque sente.»

Para o Cinéfilo, o Eduardo reportou sobre o espectáculo e escolhemos estas palavras:

«Quatro mil estavam no Coliseu. Silêncio, luzes e palmas. Toda a força possível: verde que te quiero verde. Estavam todos lá. Com ele. Assim, tudo poderia estar definitivamente em tudo. Todos estarmos em tudo e todos sermos afinal tudo, maneira de dizer: todos com todos. O que sentimos ao sentirmos tudo. Sentimento total.
A palavra exacta, minuto a minuto. Não perder o sentido, a exacta procura de todos, de tudo. A calma violência da total aventura: ondas e não uniforme paisagem. Patxi junto ao mar, a pequena aldeia, a mesa de madeira, o copo de vinho tinto, o sol, a tarde, o domingo a escorrer, como azeite, sobre os homens, as coisas, as palavras. Palavras claras de Patxi que podem corresponder a um copo que se oferece, a uma fatia de pão que se recebe.
Espectáculo? Total Participação? Comoção. Plenitude, talvez. O pão a crescer na terra, o corpo a corpo da poesia e da canção. Um homem simples frente a 4 mil portugueses.»

Em 18 de Dezembro de 2019, em Cubo de la Solana, sua terra natal, um estúpido acidente de automóvel, expulsou-o da vida.

Ficaram a música, as palavras.



DE POUCO SE FORMA UMA FELICIDADE

De pouco se forma

uma felicidade

 

do sol aberto

no trucidar das lágrimas

injustas

 

dos gestos

de que só o poema

se dá conta

 

da paz

que se tornou respiração

terra arável

 

de um nome

que se não grita

porque a liberdade o permite

 

Egito Gonçalves em  Os Arquivos do Silêncio

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

POSTAIS SEM SELO


Gostaria de ouvir as horas no relógio da Matriz, mas isso é o passado e poderia ser duro edificar sobre ele o Portugal futuro.

Ruy Belo

O OUTRO LADO DAS CAPAS


 

Devo às Colecções de Bolso, o privilégio de ter acesso a grandes livros de diversos autores. Éramos uma família ligeiramente remediada, vivendo com todas as dificuldades a que a ditadura salazarista nos obrigava. Uma mãe doméstica, um pai, homem de vários instrumentos profissionais, um avô paterno, viúvo, que vivia lá em casa com a ajuda possível para as despesas e que era caixeiro de praça do J. Português da Silva, ali à Praça da Figueira.

Assim de repente, lembro as Colecções de Bolso da Portugália, da Europa-América, da Livros do Brasil, Da Guimarães, da Minerva, outras que agora não lembro.

Nunca consegui encontrar explicação para as editoras terem descontinuado estas colecções. Talvez não lhes dessem os lucros que desejavam!...

OLHAR AS CAPAS


Diário de Uma Criada de Quarto

Octave Mirbeau

Tradução: Adelino dos Santos Rodrigues

Capa: Manuel Dias

Colecção Minerva de Bolso n 20/21

Editorial Minerva, Lisboa, Junho de 1973

Hoje, 14 de Setembro, às três horas da tarde, com um tempo suave, triste e chuvoso, entrei no meu novo emprego. É o duodécimo em dois anos. Claro que não me refiro aos lugares que ocupei durante os anos precedentes. Ser-me-ia impossível conta-los. Oh, posso-me gabar de ter visto muitas casas por dentro, muitas caras e muitas almas sórdidas!... E ainda não acabei… O modo verdadeiramente extraordinário, vertiginosos, como saltei sucessivamente de um lado para o outro, das casas para a s agências e das agências para as casas, do Bosque de Bolonha para a Bastilha, do Observatório para Montmartre, dos Ternes para os Gobelins, em todos os sentidos, sem nunca conseguir parar em parte alguma, basta para demonstrar como os patrões são difíceis de aturar hoje em dia!... É inacreditável.

OLHARES


Nada se passa por detrás das janelas desde que deixámos de estar por detrás delas.

Palavras encontradas em Diz-lhe Que Estás Ocupado de Alexandre O’Neill

Legenda: Não foi possível encontrar o autor/origem da imagem

MÚSICA PELA MANHÃ


DISQUES POP - MPO 3.056 - 1961

FESTIVAL DE SAN REMO 1961 - TONY DALLARA

Na televisão a preto e branco de antes 25 de Abril, a transmissão do Festival da Canção de San Remo era uma festa. O meu pai era um assíduo e interessado espectador. De todos os que viu ficou-lhe uma canção: “Al Di La”, vencedora na edição de 1961. Não descansou enquanto não comprou o disco.

Mas uma noite ouviu no programa “Quando o Telefone Toca”, a versão de “Al Di La” cantada pela Connie Francis. Passou anos à procura dessa versão. Nunca a encontrou. Faltava ainda muito tempo para aparecer o Amazon & Companhia.

Também andei à procura mas também não tive sucesso. Só há uns vinte anos a encontrei, em CD numa colectânea da Connie Francis, a tal versão do “Al Di La”, mas o meu Pai já não estava cá para a ouvir. 



NÓS

Quem não quer vir, que não venha.

que o dó me faz perdoar

e persistir na campanha.

Talvez,

quando eu já for percebido,

se arrependam,

e a troça então se lhes mude

num sorriso constrangido.

 

Não venham, que eu vou por eles

e gritam por minha boca

suas bocas,

fechadas, ou por vergonha,

ou por orgulho, ou por falta

de aquela fé que me arrasta.

 

Descansem!....

Se eu lá chegar, faz de conta

que quem chegou foram eles;

e faço da multidão

a capa para os meus ombros;

e Deus, que não me distingue

(eu com todos me pareço),

pra não deixar-me sem prémio

há-de dar a cada qual

que eu só mereço.

 

Se eu lá chegar....

Mas eu chego!...

Nem que de aqui a três passos

se me cansassem os braços

e as pernas se me partissem

e a vida se me acabasse,

ali, na terra, caído,

eu já teria chegado:

tanto vale minha Esperança,

que o Céu começa onde quer

que eu solte a última voz;

e a Mão que as feridas me afague,

no gesto de as afagar,

deixou as portas do Céu

abertas de par em par.

 

Onde eu morrer, já cheguei.

As portas hão-de se abrir,

por Prémio que Deus me deu.

E eu vou entrar, arrastado

por todos vós, meus Irmãos,

tão convosco embaralhado

que ao ver-me dentro do Céu

não posso já precisar

qual de nós é que sou eu.

 

Sebastião da Gama em Serra-Mãe

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

OLHARES

 


«A novidade e a sofisticação que o novo cinema trazia, e de que os relatos aparecidos na imprensa da época dão conta, associou-se porém aos seus promotores ingleses. No dia da sua inauguração em 23 de Fevereiro de 1950, tocou-se o Hino de S. Jorge, em homenagem ao patrono que dera o nome ao patrono que dera o nome ao edifício, ouviu-se A Portuguesa mas foi o God Save the King que assinalou o ponto alto da cerimónia, contribuindo para reforçar aquela convicção. O programa continuava, de resto, com um filme de actualidades inglesas, ao qual se seguiram desenhos animados e um concerto de órgão dado por Geral Shaw, um música da BBC que viera propositadamente para o evento e que por cá permaneceu algum tempo. Entretanto mostrava-se o filme Os Sapatos Vermelhos (1948), realizado pela dupla Michael Power e Emeric Pressburguer, que se baseava num conto de Hans Christian Andersen, tendo por tema o ballet, conferia um valor acrescentado ao ambiente da sala.»

Margarida Acciaiuoli em Os Cinemas de Lisboa

ANTOLOGIA DO CAIS II



O QU'É QUE VAI NO PIOLHO 


Aqui, ainda é, o Cinema São Jorge.


Exteriormente, o São Jorge não mudou.

Foi inaugurado no dia 23 de Fevereiro de 1950.

Houve um concerto de órgão dado por Gerald Shaw, música da BBC e no écran foi exibido Os Sapatos Vermelhos.

Juntamente com o Monumental e o Império, constituíam as catedrais cinematográficas de Lisboa

Projecto de Fernando Silva, foi inaugurado em 1950, sofreu obras de remodelação em 1982 e passou a ter três salas.

No ano 2000 a Câmara Municipal de Lisboa exerceu o direito de compra do imóvel, e desde Novembro de 2001, por ali se realizam festivais temáticos de cinema, bem como concertos de música.

Dos muitos filme que vi no São Jorge, de um guardo memória.

Chamava-se o filme O Ballet de Moscovo  (1) e vi-o com o meu pai e o António Colaço.
Para o puto de 13 anos, que então era, a sensação que ficou, foi a de uma enorme seca. Ainda hoje, o ballet não me provoca grandes entusiasmos.


O gosto maior era o de ir com o meu pai ao cinema.

O filme, então, não importava muito qual era, na companhia e na conversa posterior, é que residia toda a importância.

 A propósito do Bolchoi, uma lenda majestática da Rússia, se o meu pai soubesse que, há uns dois ou três anos atrás, Natalia Kasatkina, directora artística do Ballet Clássico de Moscovo disse que agora temos mais liberdade mas menos financiamento do que no tempo da URSS, estou mais que certo que a afirmação seria tema para longa e apetecível conversa.

Uma outra memória.

Um amigo, o Afonso Baptista, ia todos os anos, pelo Carnaval, ao São Jorge.

No intervalo, mais prolongado que o normal, punham a circular pelos assistentes dos balcões e plateia, enormes e leves bolas coloridas, que se arremessavam de mão em mão, perante grandes risotas.

Desafiou-nos uma vez.

Não achei nenhuma piada à história.

 O mesmo não direi dos fininhos que, após a sessão, daquele sábado de Carnaval de finais doas anos 60, fomos beber ao Ribadouro, a célebre Universidade do Tremoço, onde, conta a lenda, Baptista-Bastos e Fernando Lopes idealizaram e escreveram o Belarmino.

Ainda mais uma memória do São Jorge.

A Aida ainda tem guardado no seu infindável baú, um bilhete de um dos recitais que aconteceram no São Jorge, para evocar a memória de João Villaret.

João Villaret morreu no dia 21 de Janeiro de 1961.

Não sei a partir de quando, e quanto tempo durou, estas evocações de João Villaret que se realizavam durante a hora do almoço, com discos que o artista gravara para a Valentim de Carvalho.

Um foco de luz projectava-se sobre o palco, onde se encontrava uma cadeira e um ramo de flores.

Este é o bilhete da sessão do ano de 1966.

Um dia de tempos recentes, o Pedro de Freitas Branco, Filhote para os amigos, perguntava:

Além hoje seria capaz de sair de casa para ouvir um disco de poesia numa sala de cinema?

 

(1)   O Ballet de Moscovo.

Com Galina Ulanova, Raissa Struchkova, Nikolai Fadeyechev e o Ballet do Teatro de Moscovo, Orquestra do Covent Garden.

Produzido e realizado por Paul Czinner.

Estreado no Cinema São Jorge em 9 de Janeiro de 1968.


OS 75 ANOS DO CINEMA S. JORGE


 A Lisboa que conheci, vai morrendo aos poucos.

Vão desaparecendo os cinemas, as livrarias, as tascas, os restaurantes, algo mais, que marcaram um tempo.

O Cinema São Jorge faz 75 anos e, como diz Maria João Martins «é a última “catedral do Cinema” de Lisboa ainda consagrado à exibição.»

Há dias, por mero acaso, verificámos que o Cais do Olhar, no dia 7 de Fevereiro de 2010, começou a ser percorrido.

Quando aconteceram os 10 anos, organizámos uma breve Antologia, para os 15 anos, entendemos, volta e meia, relembrar textos por aqui publicados.

Os 75 anos do Cinema São Jorge, será a primeira lembrança, nestes nossos 25 anos, um texto aqui publicado no dia 12 de Março de 2012.

O Cinema São Jorge comemora os seus 75 anos com uma programação gratuita que nos faz revisitar momentos marcantes da programação desta sala, piscando discretamente o olho ao futuro.

«Começamos no dia de aniversário com A Quimera do Ouro, de Charles Chaplin – obra-prima que completa 100 anos em 2025 –, acompanhada ao vivo pela Lisbon Film Orchestra.
Depois, e até 2 de março, prosseguimos com um clássico musical estreado em 1950, três filmes retalhados pela Censura e o primeiro êxito do pós-Revolução.
Piscando o olho ao futuro e aos mais novos, nos dias 1 e 2 de março vamos abrir ao público em geral a oficina STOP! Animação!, habitualmente reservada às escolas, e no dia 1 de março haverá visitas guiadas aos bastidores.

As sessões de cinema são de entrada gratuita, sujeita à lotação das salas, mediante levantamento de bilhete no próprio dia na bilheteira do Cinema São Jorge.»

O programa completo pode ser visto aqui.

Legenda: a fotografia do Cinema São Jorge foi tirada do blogue Restos deColecção.

AQUELE QUE TRAZIA UMA VINHA GUARDADA

                     A António Cabral,

         no quinto aniversário da sua morte

 

Aquele que trazia uma vinha guardada

na gaveta da alma de mais fácil acesso

e sempre aberta – não pode ter morrido.

 

Para facilitar, digamos que emigrou

com juras de algum dia regressar,

voltar a ver o rio, afagá-lo

como se afagam as cãs de um velho pai.

 

Felizmente para nós,

não pôde levar na mala breve

os seus papéis, os seus livros, a viola

que dedilhava em pensamento

e nos fazia dedilhar a nós.

 

De modo que, enquanto não regressa,

a sua voz continua a nosso lado,

indicando caminhos, desbravando

matagais que ocultam a esperança.

 

A.M. Pires Cabral em Gaveta do Fundo

 

   

domingo, 23 de fevereiro de 2025

POSTAIS SEM SELO

Quem não tem um amigo viaja sem bagagem.

Mia Couto

MÚSICA PELA MANHÃ


«Gabriela, Cravoe Canela, o mais conhecido romance de Jorge Amado,  é o amor tórrido entre Nacib e Gabriela. Os brasileiros fizeram do romance de Jorge Amado uma telenovela, que alguns dizem que banalizou o romance, mas a editora Europa-América informou que Gabriela Cravo e Canela foi o livro mais vendido na Feira do Livro de 1977.  A novela foi protagonizada por uma esplendorosa Sónia Braga, era a televisão por cá a preto e branca, e a RTP estreou-a em 16 de Maio de 1977. Chegou a atingir quatro milões de espectadores e quem não tinha televisão em casa, deslocavam-se ao café e associações populares do bairro onde viviam.

Algumas vezes, a Assembleia Nacional adiou ou suspendeu sessões para que os deputados pudessem assistir ao episódio da novela.


O livro da Biblioteca da Casa, na página em que os livreiros colocavam, a lápis, o preço do livro, está lá o selo da Livraria Moraes, onde o livro foi comprado por mim, Livraria Moraes, fundada em 1958 pelo António Alçada Baptista, que no seu livro de memórias, A Pesca à Linha, conta a história da livraria, bem como da editora que há-de publicar OTempo e o Modo.

Nunca fui um habitual cliente da Moraes, passava por lá volta e meia, um espaço que era frequentada pelas elites intelectuais e políticas. Foi na Moraes que JoaquimVieira conta a história passada com Mário Soares, presidente, ao olhar no escaparate, o livro de José Saramago Manuel de Pintura e Caligrafia, e interpretando o livro à letra, perguntou, em alto e bom som:

«Mas o que é o que o Saramago sabe disto?

Chegados aqui acabámos por encontrar a Música pela Manhã de hoje, e aqui vamos nós com o tema de abertura da novela, com música e letra de Dorival Caymmi e a interpretação da extraordinária Gal Costa.

«Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim vou ser sempre assim, Gabriela, sempre Gabriela».


OLHAR AS CAPAS


 Gabriela, Cravo e Canela

Jorge Amado

Prefácio: Ferreira de Castro

Capa: António Domingues

Colecção Século XX nº 29

Publicações Europa-América, Março de 1960

Essa história de amor – por curiosa coincidência, como diria D. Arminda – começou no mesmo dia claro, de sol primaveril, em que o fazendeiro Jesuíno Mendonça matou, a tiros de revólver, D.Sinhàzinha Guedes Mendonça, sua esposa, expoente da sociedade local, morena mais para gorda, muito dada às festas de Igreja, e o Dr. Osmundo Pimentel, cirurgião dentista chegado a Ilhéus há poucos meses, moço elegante, tirado a poeta. Pois naquela manhã, antes de a tragédia abalar a cidade, finalmente a velha Filomena cumpria sua antiga ameaça, abandonara a cozinha do árabe Nacib e partira, pelo trem das oito, para Água Preta, onde prosperava seu filho.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

O OUTRO LADO DAS ESTANTES

Este livro de Gordon Childe, 520 páginas referindo o «progresso da humanidade desde as suas origens até ao fim do Império Romano» faz parte daquele largo número de livros que o meu pai foi comprando, preferencialmente, para serem lidos em tempo de reforma.

Faz parte do Outro Lado das Estantes da Biblioteca da Casa, e foi editado pela excelência das Edições Cosmos de Manuel  Rodrigues  de  Oliveira,”O  Homem da Cosmos”, Testemunha de um tempo passado,  um  homem  que  fez  da sua vida  um  culto ao livro e à arte de imprimir as ideias.

As edições  Cosmos contaram, entre outros, com a excelência do trabalho de Bento de Jesus Caraça e Vitorino Magalhães Godinho, principalmente na Biblioteca Cosmos.

Volto a dizer: não terei tempo para olhar todas as capas desta Biblioteca da Casa, que começa com uma meia dúzia de livros de Mário Santos, meu avô paterno, republicano histórico, benfiquista e anticlerical, tal como gostava de se dar a conhecer a quem lhe perguntasse quem era.

OLHAR AS CAPAS


O Homem esse Desconhecido

Gordon Childe

Tradução e notas:

Vitorino Magalhães Godinho e Jorge Borges de Macedo

Colecção A Marcha da Humanidade nº 1

Edições Cosmos, Lisboa, Julho de 1947

No século passado aceitava-se o «progresso» como um facto. O comércio expandia-se, a produtividade da indústria aumentava, a riqueza acumulava-se, As descobertas científicas prometiam um avanço indefinido ao domínio do homem sobre a natureza, e, por conseguinte ilimitadas possibilidades de intensificar a produção. Ora, tal optimismo sofreu um rude abalo. A guerra de 1914 e as crises consequentes, com a produção mesmo no meio de horrível pobreza , de um excesso aparente de bens, minaram os alicerces económicos. Dúvidas quanto à realidade de «progresso» estão largamente espalhadas.

PAPÉIS DATADOS


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

TRABALHO DE CASA

O que faço na memória de um degelo de rios, quando
as águas caem sobre as águas, sob a espuma redundante
de ideias brancas? Aqui me afundo até ao próprio
fundo de mim próprio, aqui onde os gestos humanos
da despedida e do amor não têm outro sentido
além do que nasce das próprias águas: efémeros,
como o tempo, e como o tempo presos ao que, cada um de nós,
ignora do outro. Acendo cigarros nos cigarros,
respirando o fumo húmido das origens, vigiando
a transparência que se desfaz no intervalo das folhas,
quando o vento as empurra para a estrada, pergunto
de onde vem a minha saudade de ti, e até onde
vai o meu desejo de te ouvir, de novo, à minha frente,
enquanto as horas passam como se não tivessem de passar,
e os teus lábios bebem todo o tempo da minha vida. Como
se o desejo não se esgotasse, também ele, como
estas águas que acabam em cada instante em que se renovam,
trazendo as chuvas eternas do norte para dentro de poços
sem fundo, até ao fundo dos lagos mais subterrâneos,
puxando com a sua negra densidade os meus
impulsos de treva: cama obscura para onde desço
quando adormeço. Mas tu, com os teus braços de raiz aérea,
puxas-me para esse cimo de montanha onde o silêncio
se transforma em sílaba - a sílaba inicial
do mundo, a interrogação do gesto nascente de todas as
origens, o soluço de um suicídio de murmúrios,
percorrida pela única percepção inútil: a da vida
que se esvai no instante do amor. E encostamo-nos à pedra
abstracta do horizonte, a que nos deixou sem voz quando
as grutas do litoral se abriram; para que a pedra nos beba,
gota a gota, todo o sangue. Então, é nas suas veias
que correm as nossas pulsações. E afastamo-nos, devagar,
para que a terra viva através de nós
uma existência puramente interior, despida
do fulgor animal das manhãs. Sentamo-nos
no mais longínquo dos quartos, de janelas fechadas, e
abraçamo-nos com o rumor de primaveras clandestinas,
com o inverno nos olhos

Nuno Júdice 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

OLHAR AS CAPAS


Ilha do Desterro

Alexandre Pinheiro Torres

Capa: João da Câmara Leme

Colecção Poetas de Hoje nº 29

Portugália Editora. Lisboa, Outubro de 1968


Fala com o Mar pelo nascer do dia


Venho olhar a tua quinta-feira

que é esta longa seara

de pedra. E vejo ainda

desarmada a mão avara

 

que vai disparar a bala

rente ao úvido da Manhã.

A luz da aurora é a fala

duma língua temporã

 

que primeiro nada lavra

e é uma charrua de tábua,

mas quando se faz palavra

é um pomar a tua água.

 

Chego-me para olhar a quinta

como se olhá-la adubasse

essa terra tão faminta

da clareza da sintaxe.

 

Vê agora a tua mesa

se é que a luz ainda por vir

te deixa ver a portuguesa

maneira de a servir.

 

O que nela se nos dá

sobre a ausência da toalha

é a pedra que aqui há

como única vitualha.

 

E a mão deflagra o gatilho

secreto do amanhecer.

As palavras são o rastilho

do lume que vai nascer

 

troando ao ouvido que ensurdece

o urgentíssimo arcabuz

que da noite lenta tece

uma bengala de luz.

 

Alexandre Pinheiro Torres em Ilha do Desterro

AO ANTÓNIO RAMOS ROSA

Folha que escuta o vento    o som do muro

erguido ao sol da erva    nuvem clara

feita o instante verde    a pedra rara

sobre o anel do tempo e do futuro.


Boca do ar   espuma das palavras

na janela do fogo    abelha dura

voando sobre os beijos    mão que lavras

na polpa das cerejas a mais pura


morte que se escreve com a mágoa

do medo sobre o rosto    a longa asa

rasando os lábios soltos pela água

de quem faz com versos uma casa.

 

Joaquim Pessoa em Poemas de Perfil em Paiol de Pólvora

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

POSTAIS SEM SELO


O silêncio é a mais perfeita expressão do desprezo.

George Bernard Shaw

DISTO, DAQUILO E DAQUELOUTRO


Há dias, neste Cais, poderia encontrar-se o lamento de que as livrarias vão desaparecendo por Lisboa, também a ideia de fazer um roteiro de algumas livrarias, quando as havia.

Porém na Internet podemos ir encontrando sites que vendem livros.

Um bem interessante e de confiança é a Frenesi Loja:

Mais de 5.500 obras disponíveis no catálogo.

Vou lá regularmente e hoje copio as referências que a Frenesi faz ao livro que reúne as peças de teatro A Guerra Santa e A Estátua:

«Livro apreendido pela polícia política do Estado Novo em circunstâncias particularmente vergonhosas, dando origem ao encerramento da casa editora, que, depois de ver as instalações seladas, acabou com as caves-armazém criminosamente inundadas. Sttau Monteiro será preso, paga do regime pela sátira à ditadura e à guerra colonial. A imprensa, a 7 de Dezembro de 1966, transcreveu o comunicado do governo com a versão oficial para o referido “encerramento”:

«Do S. N. I. recebemos a seguinte informação:

“Foi mandada aplicar á Editorial Minotauro a pena de encerramento definitivo, prevista no art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 33015, de 30 de Agosto de 1943.

Esta pena foi aplicada àquela empresa por ter editado um volume com graves implicações prejudiciais á defesa dos fins superiores do Estado e nomeadamente ofensivo do prestígio das Forças Armadas, que neste momento se batem, numa guerra que nos é imposta, em defesa da integridade nacional.”».

1.

«Resumindo e concluindo: Portugal é mesmo um país especial e indescritível, dos poucos onde dois partidos gémeos, o PS e o PSD, governam à vez e fingem odiar-se, apesar de frequentarem os mesmos restaurantes, as mesmas igrejas, as mesmas organizações secretas, as mesmas praias, e terem entre os seus quadros todo o tipo de gente, desde corruptos a ladrões, malucos, pervertidos, bêbados, esotéricos e desavergonhados. E imagino que seja assim na Iniciativa Liberal, no Livre, no PAN, no PCP… No jornalismo é a mesma coisa: há de tudo, como na farmácia.»

Pedro Garcias de uma crónica no «Público» de 14 de Fevereiro de 2025

2.

No final de Janeiro deste ano, mais de 1,5 milhões de utentes continuavam sem ter um médico de família atribuído. Um número em linha com os valores registados no final do ano passado e com os de final de Março desse ano - o Governo tomou posse a 2 de Abril. Na altura, o objectivo enunciado pelo executivo é dar uma resposta de saúde familiar a todos os portugueses até ao final deste ano.

3.

No dia em que Carlos Paredes nasceu há 100 anos, o Público publicou um excelente trabalho sobre o príncipe da guitarra portuguesa designado por Três Músicos escrevem sobre Carlos Paredes:

Um leitor deixou este comentário:

«Parabéns ao jornal Público, pelo serviço cívico, cultural e artístico, que presta, ao dedicar espaço, tempo e esforço a divulgar o legado de Carlos Paredes. Permito-me, com a devida vénia, complementar o testemunho de Manuel Fúria, com algumas ideias, que espero serem úteis para o debate, que se pretende plural e tudo menos unânime, consensual e, por isso, vazio de substância. Vinte anos depois da morte de Paredes (em 2004), num mundo em que a política dita um rosário de casos de corrupção, de escândalos éticos, económicos, de guerra selvagem e de gente desiquilibrada e megalómana (Trump e Musk são apenas os mais evidentes), relembrar o legado, a simples existência, de um homem simples, humilde, generoso e elegante como Paredes constitui um bálsamo para a alma. Haja esperança e alegria.»

4.

59% dos professores já se sentiram vítimas de bullying e 10% dos professores dizem já ter sofrido agressões físicas, principalmente de alunos, mas também de pais.

 5.

Nas empresas de restauração e similares os imigrantes são já mais de 30% do total de trabalhadores.

6.

Um em cada cinco portugueses reforma-se antecipadamente e em 2024 verificaram-se cinco despedimentos de grávidas por dia, um significativo aumento face a anos anteriores.

OLHAR AS CAPAS


 Notas para a História do Socialismo em Portugal

(1871-1910)

Prefácio: Victor de Sá

Capa: João da Câmara Leme

Colecção Portugália nº 11

Portugália Editora, Lisboa, Agosto de 1964

Ora depreende-se das palavras de Jaime Batalha Reis, testemunha comparticipante destes factos, que só ele, José Fontana, Antero de Quental e os três emissários da Associação Internacional dos Trabalhadores é que tomaram parte nas conferências realizadas a bordo dum barco no Tejo, o que está em oposição com a afirmação de Nobre França quando diz que às «conferências dos três espanhóis com Fontana e Antero de Quental (que veio conduzido por Fontana) assistiram mais dois ou três moços, eventualmente, que não pude averiguar com certeza quais foram«.

Parece-nos, portanto, que o mais certo e real deverão ser as «recordações» de Jaime Batalha Reis, pois foi o remador do barco e um dos assistentes às conferências no Tejo.

VELHOS RECORTES


 

A Abril em Maio foi uma das muitas actividades que Eduarda Dionísio desenvolveu, ao longo da sua vida, no campo cultural. A Eduarda Dionísio deixou-nos em Maio de 2023 e como último grande trabalho deixou-nos a Casa da Achada onde se encontra o espólio, devidamente tratado e catalogado, de seu pai, o pintor e escritor Mário Dionísio.

A Wikipédia diz-nos o que foi a Abril em Maio:

«A Abril em Maio é uma associação cultural fundada em 1994, por ocasião dos vinte anos do 25 de Abril. Materializou, ao longo destes anos (1994-2005), um projecto singular de associativismo e de intervenção cultural que se inspirou na memória do movimento popular que marcou a revolução (em especial na sua dimensão emancipatória), tendo vindo a afirmar-se desde a sua fundação como uma alternativa às lógicas culturais de mercado. Daí que na declaração de princípios desta associação se leia: "À Abril em Maio não interessa o cultural em que a cultura se transformou, mas a cultura enquanto conjunto de saberes, de saberes-fazer e de saberes-viver, fundado numa prática colectiva em que os indivíduos e os grupos são actores da sua própria existência. À Abril em Maio interessam, sim, os produtos culturais (e muitos deles são arte) que, pelo modo como são produzidos e reproduzidos e o valor de uso que podem ter, resistem à instrumentalização política e económica. Aqueles que, de uma maneira ou de outra veiculem ideais de solidariedade e cooperação, visando a transformação, e que combatam o autoritarismo, a ideologia competitiva, o discurso dominante e os ditames do mercado. À Abril em Maio interessa o trabalho dos intelectuais e dos artistas que, em vez de aceitarem, aprovarem e aplaudirem a ordem estabelecida, a contestam, a criticam e tentam combatê-la.»

Estes dois velhos recortes são textos de José Duarte e Manuel Gusmão pedindo desculpas por não conseguirem mais colaboração para a Abril em Maio. Creio que também existe um texto do Vitor Silva Tavares sobre os mesmo pedido de colaboração da Eduarda, mas, apesar de voltas e mais voltas, não o encontro.

INTERIOR

É bom ouvir de noite uma trompa de caça

Despir muito depressa a túnica da Lua

E descobrir o amor no forro de uma casa

onde apenas vibrava a memória da chuva

 

Depois de arrebatar o corpo da amada

ao ritmo infernal de um batuque de guerra

é bom permanecer na mesa de montagem

misturando Anfião  Vivaldi  Apollinaire

 

É bom lançar ao fogo um velho dicionário

É bom o crepitar das palavras antigas

Adivinhar quais são as que por fim renascem

e que sabem voar ao saírem das cinzas

 

É bom pedir perdão ao som de uma sonata

Segredar num soneto a ária do remorso

É bom recomeçar com música de jazz

Vestir sem ninguém ver a túnica de Apolo

 

David Mourão-Ferreira de Do Tempo ao Coração em Obra Poética

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

CRONICANDO POR AÍ

«Compreendo o silêncio de Benfica e Sporting perante a morte de Pinto da Costa. Ensaiei na minha cabeça várias reações oficiais, e todas tinham o mesmo problema. As palavras queimam e perseguem-nos quando são mal escolhidas. Seria estranho resumir a duas linhas de circunstância uma reação quando há tanto por dizer, se quisermos ser sinceros. Uma instituição deve representar os seus membros, e seria difícil, provavelmente inadequado, ser uma extensão do que estes pensam no momento atual.

É complicado encontrar algo estruturalmente positivo para dizer acerca de Pinto da Costa, alguém que, com ocasional elegância, irónica souplesse e a tal cultura acima da média que o tornou uma referência entre filisteus, fez do ódio aos rivais uma figura de estilo amplamente apreciada. Tanto que produziu efeito como cultura e forma de estar. Tanto que foi copiada por outros dirigentes, inclusive no meu clube.

Já aqui escrevi que o ex-presidente do FC Porto inventou um clube, mas aquilo que fez, e sobretudo o modo como o fez, alastrou-se em forma de doença. Mais do que uma identidade clubística, a cultura materializada por Pinto da Costa tornou-se um padrão a seguir, a forma correta de fazer as coisas. Essa foi a sua maior conquista enquanto protagonista. Quantas vezes ouvi pessoas justificarem práticas dúbias no futebol com expressões como «as coisas têm de ser assim», «não podemos ser anjinhos», porque, se assim for, «vamos ser comidos», recorrendo às palavras históricas de José Maria Pedroto. O futebol português permitiu que se consensualizasse a ideia de que os «bons rapazes» são comidos e que só os maus ganham. Patrocinou uma nova era de competições em que essas eram as regras do jogo.

Posso recuar até à minha infância. Não me lembro de outro futebol competitivo em Portugal. O que hoje acontece assenta na seguinte dialética: as vitórias dentro de campo nunca são apenas isso. Desde que me recordo, assisto a uma engrenagem imparável de operações nos bastidores, negociatas estranhas, nomeações inexplicáveis, decisões escandalosas, personagens sinistras, critérios desiguais e, no final de tudo, uma série de platitudes proferidas pelas lideranças sobre um desporto aparentemente imaculado. Porque toda a gente tem contas para pagar, a vida continua e o povo mantém-se interessado. O povo, aliás, abraçou tudo isto como parte da diversão.

Criou-se uma nova camada de entretenimento em torno da trama, com muitos vilões, todas as suspeitas e nenhum culpado. Se o termo «verdade desportiva» ganhou relevância, é porque muitos precisaram dele para expor as mentiras em que o futebol português labora, e também porque tudo isto se tornou parte de uma discussão, o mal a combater enquanto parte de uma sociedade do espectáculo. A distinção entre licitude e ilicitude perdeu-se pelo caminho. O que sobra é uma construção social aceite por todos, onde a esperteza e a manha são tão importantes quanto o atleticismo e a vontade de competir.

Eu vejo um legado indissociável de Pinto da Costa e uma herança deixada a todos os que não o aplaudiram com fervor religioso: um futebol em que quase ninguém aceita o resultado final de um jogo, um desporto seguido apaixonadamente por milhões, mas no qual poucos acreditam piamente no que veem. Por muito que se elogie esta indústria pelos seus proveitos financeiros e desportivos, por muito que se reconheça que o desporto cumpre uma função social importante alheia à sua faceta mais pantanosa, o lugar em que o futebol nacional se instalou ao longo dos anos, naquilo que tem de mais doentio e antidesportivo, deve muito a Pinto da Costa. Foi ele quem demonstrou que era possível recorrer a quaisquer meios para atingir os fins pretendidos. Está para chegar o dia em que me sinto convencido de que essa cultura foi absolutamente erradicada do desporto e das principais esferas de decisão.

É natural que muita gente se sinta obrigada a dizer algo mais simpático neste momento. Aqui chegados, depois de tudo o que vimos ou deixámos acontecer com um piscar de olho maroto ou com um assobio para o lado, será mesmo altura de falar a verdade? Mais vale deixar ficar como está. Já passou. Esse foi um enorme mérito de Pinto da Costa: trabalhou nos corredores mais sombrios para vencer vezes suficientes. Fê-lo até conseguir cristalizar como verdadeiro e lícito, até admirável, aquele que foi o seu percurso no desporto. Por isso, se as últimas 72 horas nos mostraram algo, é que os adeptos de um clube não estão prontos para falar abertamente sobre o que se passou ao longo das últimas décadas. Arrisco dizer que nada mudará nesse capítulo, porque, muito antes de clamarmos pela verdade desportiva, já o então presidente do FC Porto mostrava o seu engenho na prática da pós-verdade.

Hoje, parece não ter havido escuta que o desmentisse, da mesma forma que não parece haver pessoa capaz de convencer outra de que uma coisa azul é amarela ou de que a Terra é mesmo redonda. Para o que der e viver, o futebol continuará a ser, depois de Pinto da Costa, um ajuntamento de terraplanistas: uns porque negam o amplo corpo de evidências, outros porque a vida lhes continuará a dar motivos para desconfiar. Talvez seja só isso e não valha a pena aspirar a mais.

Eu percebo. Se um presidente do meu clube vivesse até aos 87 anos e, no entretanto, me tivesse permitido celebrar a conquista de duas Taças dos Campeões Europeus e duas Taças UEFA, eu também estaria grato e tenderia a ignorar o resto. Assim se explica que, após uma eleição que viu Pinto da Costa ser derrotado sem apelo nem agravo, o FC Porto apareça aos olhos do comum adepto de outro clube como uma entidade em profunda angústia existencial. Pudera. O presidente que inventou tudo isto deitou fora o manual. Um clube que durante 40 anos fez da corrupção, das agressões, do ódio aos «vermes que merecem desprezo», da intimidação e da violência, dimensões não escritas da sua identidade. Conseguiu até que tudo isto se tornasse socialmente aceite, uma espécie de mal necessário, uma excentricidade em forma de clube de futebol com a qual tínhamos todos que aprender a viver.

Compreendam por isso o silêncio oficial, sem elogios nem críticas. Compreendam também que os demais adeptos ou as instituições que os representam não sintam o mesmo carinho por esta pessoa que agora nos deixa. O respeito institucional pelo qual tantos clamam hoje não encontrou reciprocidade nos últimos 40 anos. Compreendam que os adeptos questionem as conquistas de um clube ou de um presidente quando estas foram manchadas por décadas de práticas antidesportivas. Compreendam que esses adeptos jamais venham a considerar imaculada uma herança deixada nestes termos.

Pinto da Costa fez tudo o que estava ao seu alcance para ser a melhor coisa que aconteceu aos portistas. Não tenho dúvidas de que conseguiu. No processo, tornou-se a pior coisa que aconteceu ao futebol português. Parece-me que viveu sempre bem com esta minha opinião. Paz à sua alma.»

Vasco Mendonça em A Bola de 18 de Fevereiro de 2025