segunda-feira, 16 de junho de 2025

POEMA EM PROSA

                                               ao António Lobo Antunes

 

Tive um encontro de Verão com o senhor José Fontinhas.

Eu, o Pina, o Lage, tantos que têm vazio o coração pela

falta de novos versos. Foi pelas seis da tarde, a água do

Douro continuava em luta contra as ondas, na foz. As

 

palmeiras encostadas ao vento e, mais uma vez, o auditório

pequeno para tanta saudade. Tive um encontro, chamo

José Fontinhas ao telefone, por favor, gritava o empregado

no Piolho há quarenta anos, contava o Pina. Ele, reverente

 

 

ao Poeta pregava-lhe a partida mais inominável – a da

identidade. O dito José sentado na esplanada, contou,

chamo José Fontinhas ao telefone, por favor, o Pina

na cabine espreitando o olhar impávido, o sorriso

 

invertido de ex-José, nosso Eugénio. A identidade é

uma coisa nossa, constituída com anos e anos de visões

ao espelho. O senhor José tinha morrido quando matou

o pai, o senhor Eugénio tinha nascido do amor à mãe. Mas

 

faltou tanta gente aos ciprestes do cemitério. Pensei

que as vendedoras do Bolhão deixariam os verdes, que os

rapazes da foz que ele tanto amava se chegariam em tronco

nu de mais um salto desde o cais da Ribeira. Que as borboletas

viriam em enxames de cor pousar na urna e esconder

o castanho da madeira nova. As árvores abanando as nuvens

junto à foz e o Pina a contar da morte lenta do nosso poeta.

Aponto uns versos pedindo ao rio que desista de afrontar

 

 

o mar. E sigo dizendo sílabas ao som das frases do senhor

José, lendo, quarenta anos depois, os poemas que uma nova

identidade criou. Encontrei no Verão o senhor Fontinhas.

Hei-de ir a Lisboa bater à porta do senhor Antunes.


Jorge Reis-Sá 

Sem comentários: