quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

OLHAR AS CAPAS


O Caso das Criancinhas Desaparecidas

Luiz Pacheco
Círculo de Leitores, Lisboa, Fevereiro de 1981

A verdade é esta: a Irene tinha de sair. Da minha vidinha triste. Tinha só 19 anos. Eu: 19xmil. É muito. Uma grande desproporção de idades de espaço entre nós. Ia dar mal. Já se sabia (antes) Quando nos juntámos disse um dia cinicamente para um amigo que só tencionava pô-la em rodagem. Lixei-me. Fui justiceiramente colhido pelo meu próprio jogo. Já toda a gente depois contava com isso (e eu, antes de todos; sei como elas acontecem, isto é, nos calham na cama e depois como se pisgam). Quando o silêncio começou a cair em cima de nós, começou também, inevitavelmente, a haver silêncio em nós entre nós. Amargura, recriminações mútuas coisas antigas que se calam mas azedam os mínimos ditos e atitudes, chispam em olhares de um ódio pequenino caseiro, vai explodir. Um silêncio mais denso e crescente, intrigante. Um realejo de árias desafinadas a ranger e sempre as mesmas e sempre a despropósito que surgiam nas conversas entre nós, um frémito de rancor contido lodoso envolvente. É fácil de dizer escrever. Não assim para viver e todos os dias o mesmo. Quando se ama. Portanto, atenção!, o pior vem agora.
O que era Irene para mim? Um caso incestuoso. Amante filha paqueta companheira mãe enfermeira cúmplice governanta criada para todo o serviço secretária ama doutros filhos meus sobrinhos dela (esta nobre rapariguinha esta menina do povo criou cinco crianças com 18 anos) libertina comigo quando é dado numa semianalfabeta e mais mais: muita fome de tudo a meu lado e com dignidade, desdenhando pedir, altiva de sete raios, trabalhando moira de trabalho, daqui te saúdo, rapariga! onde estiveres agora. Sê feliz que bem o mereces (é a tal minha teoria do amor pela Amada).

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