sábado, 21 de novembro de 2015

OLHAR AS CAPAS


Alma

Manuel Alegre
Capa: José Antunes
Círculo de Leitores, Lisboa, Julho de 1996.

No Inverno a Escola era feia e triste. As mãos enregeladas, muitas delas cheias de frieiras, mal podiam pegar nas canetas. As orelhas doíam, a humidade do rio subia pela encosta acima e atravessava a roupa que era pouca e leve e muitas vezes rota e remendada. Eu olhava os pés descalços e cheios de feridas dos meus companheiros, as cabeças peladas, os rostos cobertos de impingens e sentia uma repugnância misturada com revolta.
Porque é que uns, poucos, tinham sapatos e outros, a maior parte, não?
Perguntei ao professor e ele ficou atrapalhado. Perguntei em casa e ficaram incomodados. Fiz muitas vezes essa pergunta. E de cada vez que a fazia sentia que estava a fazer uma pergunta inconveniente. Nunca ninguém me respondeu e continuo, de certo modo, a perguntar.
Porque ainda sinto o frio da escola. Ainda sinto o cheiro a pobreza, o pouco. Foi sobretudo isso que aprendi, além da gramática, das contas, da História Pátria, dos rios, das serras e das linhas de caminho-de-ferro. Aprendi a conjugar os verbos e nunca foi preciso o professor Lencastre virar-me de cabeça para baixo. Mas a quem tenho eu de agarrar pelos pés e bater com a cabeça no chão para que de uma vez por todas me digam porque é que uns usavam sapatos e outros não?

Sem comentários: