quinta-feira, 7 de agosto de 2025

PAVANA PARA UMA TIA DEFUNTA

A cabeça de vaca da minha tia mais velha

repousa em guerra lenta no cemitério maior.

Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha.

Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.

 

Repousa em paz Raposa que na toca

fareja a galinhola e o fricassé.

Já não mija mas cheira

já não vive mas ousa

ser a santa que foi  ser o estrume que é.

 

A cabeça de vaca de minha tia refoga

nas lágrimas burguesas da família enlatada

cozinha-lhe a memória um viúvo de toga

descasca-lhe a cebola uma filha frustrada.

 

A cabeça de vaca de minha tia meneia

o sim-sim i não-não dos outros semivivos

na família a razão de se morrer a meias

é a exalação dos suspiros cativos.

 

Se não fosse o desgosto  se não fosse a gordura

o retrato na sala  o buraco no ventre

se não fosse de força tinha feito a escritura

nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.

 

Minha tia mastiga  minha tia castiga

na saleta do inferno as almas dos criados:

– não me limpaste o pó  a campa tem urtigas

atrasaste o jantar dos condenados.

 

A cabeça de vaca de minha tia sem nome

coze no fogo brando do que é passar à história.

Dissolve-se na boca  resolve-se na fome

Do senhor que a devora em sua santa glória.

José Carlos Ary dos Santos em Resumo

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