sexta-feira, 18 de maio de 2012

JÁ NÃO TENHO CASA HÁ MUITOS ANOS


Já não tenho casa há muitos anos; quando por ali passo, o que é raro, sento-me nos bancos do adro ou nos degraus de granito de qualquer balcão onde brinquei em pequeno. Respiro o ara das tílias; converso com duas ou três pessoas que timidamente acabam por se me dirigir; pergunto-lhes pelas cegonhas que, sem campanário na igreja, procuraram outro céu, e abalo, depois de um café já a caminho da estação de Castelo Novo. Chego ao Porto com os olhos tão cheios do oiro vegetal dos fenos ou do sangue negro das cerejas que, durante uns dias, tenho medo de cegar. Só depois de ter lavado os olhos no mar da Foz volto a reconciliar-me com a cidade.

Eugénio de Andrade em À Sombra da Memória.

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