domingo, 6 de maio de 2012

JANELA DO DIA


1.

Nunca usei outro perfume a não ser o que foi criado para mim a pedido de Guillaume nessa viagem a Paris. Substituiu o Bounce, fala por mim e recorda-me de que existo. Uma das minhas companheiras de apartamento passou vários anos a estudar teologia, arqueologia e astronomia, para perceber quem foi o nosso criador, quem somos, por que motivo existimos. Todas as noites, chegava a casa não com respostas mas com novas questões. Eu nunca me questionei sobre coisa alguma a não ser sobre o momento em que poderia morrer. Deveria ter escolhido esse momento antes da chegada dos meus filhos, pois desde então perdi a opção de morrer. O cheiro acre dos seus cabelos ao sol, o cheiro a transpiração nas suas costas à noite ao acordarem depois de um pesadelo, o cheiro poeirento das suas mãos quando voltam da escola obrigaram-me e obrigam-me a viver, a ficar deslumbrada com a sombra das suas pestanas, comovida com um floco de neve, transtornada com uma lágrima nas suas faces. Os meus filhos deram-me o poder exclusivo de soprar numa ferida para tirar a dor, de perceber palavras não pronunciadas, de ser dona da verdade universal, de ser uma fada. Uma fada apaixonada pelos seus cheiros.

Kim Thúy, Ru.
Edição Alfaguara, tradução de Paula Centeno.


2.

João César das Neves (JCN) na sexta-feira passada foi a Fátima, onde disse (cito a Lusa, que é laica, e cito o site Fátima Missionária, que não o é) que "o verdadeiro problema da saúde é religioso e a solução para o ultrapassar está na Igreja Católica". Antes, JCN diagnosticara os problemas da saúde em Portugal, assim: "A saúde comeu de mais e sofre de obesidade, tem vida sedentária, já experimentou vários tratamentos mas não terminou nenhum, em consequência, tem a tensão alta, tonturas e depressão." E desse quadro clínico passou para o tal remédio: "A solução" é o trabalho da comunidade cristã. Gosto de gente convicta mas receei que a solução única de JCN - ou se vai por aqui (pela via religiosa), ou nada... - pudesse de alguma forma impedir outras hipóteses de remédio. É que eu estava particularmente sensível à arrogância, naquela sexta-feira, dia 4, em que ouvi JCN. Porque por um daqueles milagres que abalam até infiéis como eu, Miguel Esteves Cardoso tinha respondido, no dia 3, ao que JCN escreveria no dia seguinte. MEC, que é crente como JCN, tem o seu amor muito doente. Com o seu jeito sagrado para as palavras, MEC tem exposto a sua dor em público (que ninguém mais tente, só ele o sabe). Naquele dia, no Público, ele escreveu uma carta a Deus. E ele dizia a Deus: "Ajuda a Maria João, se puderes. Se não puderes, não dificultes a vida a quem pode ajudar."

Crónica de Ferreira Fernandes no Diário de Notícias de hoje.


Legenda: imagem com que  o Google assinalou o Dia da Mãe.

Sem comentários: