A Paixão
Almeida Faria
Capa: João
da Câmara Leme
Colecção
Novos Romancistas nº 4
Portugália
Editora, Lisboa, Lisboa, Dezembro de 1965
De madrugada ainda levantar-se, descer para
a cozinha e enregar o trabalho reacendendo lume no fogão, lavar a louça que
ficou da véspera, com sobejos de comida, em monte sobre a pia (durante o
inverno a água gela, corta os osso da gente, faz doer às vezes até pelo braço
acima – deve ser reumático – mesmo ao cotovelo) e só depois sair para o quintal
em que os pardais já cantam sobre o carrapateiro, filhar da vassoura e, com
ela, varrer a capoeira e aos bichos dar farelos e mais reção avondo (de manhã
as capoeiras têm sempre um certo cheiro azedo como alguns quartos de homem) e
também ao pintassilgo mudar a água para beber, pôr a tina do banho, dar-lhe ou
alpista ou uma folha de alface ou atão ambas, retirar o papel que, ao fundo da
gaiola, se enche de cagadelas dia a dia e de casca de alpista, voltar depois ao
quarto, lá em cima, a fim de pentear-se, pintar-se se ele a espera, pôr
arrelicas e se aparelhar do casaco comprido, cinzento e desbotado, meter a
carteira na algibeira, descer de novo a escada em caracol para a cozinha, botar
a água ao lume já pegado, pegar na alcofa dente cestos e cabanejos, bilhas,
tarefas, potes grandes de azeite ou azeitona e alguidares com todos os
tamanhos, vermelhos e vidrados, largos para a matança e para o sangue, tachos
de cobre, fulvos, em pé contra a parede de fumo nunca escura, branca, branca, caiada
e mais caiada, em seguida descer por vez segunda os degraus do quintal, abrir o
pesado portão fechado à chave, soltar os cães esquentados da noite para a rua,
ir pela rua velha e árida à derêtura caminho da praça do mercado, comprar o que
de véspera a senhora, a cuja obediência ela está, na lista de papel pardo
assentara, com uma letra grossa.
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