A Casa Eterna
Hélia
Correia
Capa: José
Antunes
Círculo de
Leitores, Lisboa, Abril de 1991
Fala de Bento Serras, cobrador de bilhetes,
nascido e morador em Amorins:
«Diz que quer contar tudo dos princípios?
Dos princípios a gente nunca sabe.
Quando é o caso de se lhe pôr a vista em cima,
já o que quer que seja vai no meio…
Pois eu do homem não me lembro, não. Diz que
seria fácil de lembrar, mas não para mim que tenho esta cegueira.
Cegueira é modo de falar, entende. Não me
fixo. É assim como umas sombras. Dizem para onde querem ir, eu marco e marco,
boto-lhe as notas gradas entre os dedos, os trocados na mala, e vai que não
vai, volta que volta, e é noite, e é manhã, e nem reparo. Podia levantar-se aí
uma cidade por obra do demónio, é um supor, uma cidade dessas que se perdem de
vista na direcção de cima, e eu não dava por ela, tão cego ando.
Pois o homem não vi. Se veio na carreira, se
foi no meu serviço, não no vi.
Sendo segunda, que podia ser, vau para aí um
povo, um corropio. Diga. É a feira, pois. Sacas e trouxas, criançada, vinhos.
Parece isto uma terra dos Brasis. Que, não se exagerando, eu não condeno. Não
tenho é alegria. Falta-me muito o ar. Desde pequeno, sim, nem eu estou certo de
quando começou. É isto que lhe digo. Ninguém sabe os princípios.
O tal homem? Pois não, minha senhora, fosse
ele como fosse, eu não no vi.»
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