segunda-feira, 25 de julho de 2016

OLHAR AS CAPAS


A Casa Eterna

Hélia Correia
Capa: José Antunes
Círculo de Leitores, Lisboa, Abril de 1991

Fala de Bento Serras, cobrador de bilhetes, nascido e morador em Amorins:
«Diz que quer contar tudo dos princípios?
Dos princípios a gente nunca sabe.
Quando é o caso de se lhe pôr a vista em cima, já o que quer que seja vai no meio…
Pois eu do homem não me lembro, não. Diz que seria fácil de lembrar, mas não para mim que tenho esta cegueira.
Cegueira é modo de falar, entende. Não me fixo. É assim como umas sombras. Dizem para onde querem ir, eu marco e marco, boto-lhe as notas gradas entre os dedos, os trocados na mala, e vai que não vai, volta que volta, e é noite, e é manhã, e nem reparo. Podia levantar-se aí uma cidade por obra do demónio, é um supor, uma cidade dessas que se perdem de vista na direcção de cima, e eu não dava por ela, tão cego ando.
Pois o homem não vi. Se veio na carreira, se foi no meu serviço, não no vi.
Sendo segunda, que podia ser, vau para aí um povo, um corropio. Diga. É a feira, pois. Sacas e trouxas, criançada, vinhos. Parece isto uma terra dos Brasis. Que, não se exagerando, eu não condeno. Não tenho é alegria. Falta-me muito o ar. Desde pequeno, sim, nem eu estou certo de quando começou. É isto que lhe digo. Ninguém sabe os princípios.
O tal homem? Pois não, minha senhora, fosse ele como fosse, eu não no vi.»

Sem comentários: