Mais um passar de olhos pela Correspondência trocada entre José Rodrigues Miguéis e José Saramago.
Numa carta datada de 31 de Maio de 1960, Miguéis lamenta-se amargamente:
Não recebo uma palavra dum amigo! – Em Portugal estar ausente é estar esquecido.
Saramago entende a tristeza do amigo, e a 7 de Junho escreve-lhe:
As paredes da sua casa, aí, devem tê-las ouvido das boas a meu respeito! E com carradas da razão. Que silêncio é este? que se passas nos Estúdios Cor? que é feito do Saramago que perdeu o pio? E vai-se procurar os motivos e que encontra? Nada, ou antes, mil e uma pequenininhas coisas, todas igualmente significantes, mas que juntas fazem uma rede capaz de amansar Hércules – o dos doze trabalhos.
Se realmente vem em meados deste mês (e oxalá venha, que já tarda) esta carta vai encontra-lo em preparativos de partida. Não importa. Não vou deixar escapara esta oportunidade de vestir a pele de crítico, a mais sovada e dura pela da Criação.
Nesta longa carta, Saramago fala da Escola do Paraíso, de que acabara de ler o manuscrito, e no final da carta, releu o que escrevera e conclui que não disse metade do que teria para dizer.
Que é, cá no meu fraco entender a Escola do Paraíso? Um prodigioso inventário, já o disse. Todos vão procurar «o» romance no seu livro – e não «o» vão encontrar. (Como «o» não encontrar na Recherge du Temps Perdu.) E esse será o seu grande «crime». Porque nada mais atrapalha as pessoas de índole classificador (e sabemos bem quanto os lusos são dessas tais), que não saberem onde meter a ficha a que sempre reduzem as obras de arte. Por mim, confesso que até um terço do livro me senti dérouté: a todo o momento me parecia ter um fio condutor na mão, e logo, ele se partia, substituído imediatamente por outro que também me levava longe. E a minha franca admiração por si perguntava, desolada: «Aonde quer chegar este homem? isto é partida que se faça ao leitor de boa fé (ou má) que compre o ‘romance’?» Até que percebi, ou melhor, até que encontrei a «minha» explicação: a Escola é uma exploração da memória, levada telescopicamente ao infinito, desdobrando-se e repartindo-se em todas as direcções, passando e repassando infatigável, até restituir em cor e sabor, em som, tacto e olfacto (todos os cinco sentidos) uma época, um estilo de vida, um conjunto social que não se extinguiram de todo, apesar dos cinquenta anos decorridos, de duas guerras, vinte revoluções e trinta-anos-de-cultura.
Quando acertei a minha rota pela sua agulha (ou o que eu suponho ter sido a «sua» agulha), o constrangimento e o embaraço sumiram-se, e eu desci consigo à investigação minuciosa e apaixonada do tempo da «sua» infância. E embora uma adolescência nos separe (eu tenho 37 anos), descobri na minha memória inúmeros ecos da sua. Eu conheci algumas pessoas «assim», houve ruas, jardins e quintais comos os seus na minha infância. Em cada página me acontecia um sobressalto de ressurreição, e momentos houve em que o autor do livro (não sorria, por favor) era eu e ninguém mais… Cheguei ao fim como quem termina uma viagem que não devia acabar, porque as terras da memória estão sempre por descobrir, porque o «inventário» nunca está terminado.
Já disse: a carta é longa, mas arrisco, ainda, este pedacinho sobre o entusiasmo de Saramago perante o extraordinário livro de Miguéis:
Que se pode dizer do seu estilo que não esteja dito já? Somente que me pareceu mais vivo e mais alerta que nunca, lira de mil cordas, que vai do riso à lágrima, da ternura à ironia, com o ar (aparente) de quem respira sem esforço, de árvore que cresce «ali» porque «ali» está, confiante nas raízes que a sustenta de terra e no sol que a sustenta de luz.
Retenho a frase de Saramago: porque as terras da memória estão sempre por descobrir, porque o «inventário», porque o «inventário» nunca está terminado.
É assim, que alguns bons anos depois, iremos desaguar em As Pequenas Memórias.
Está lá a epígrafe tirada de O Livro dos Conselhos:
Deixa-te levar pela criança que foste.
Legenda: José Rodrigues Miguéis a comprar jornais num quiosque em Nova Iorque.
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