Sem
sequer dar por isso, absorvi muita música na altura. Em Inglaterra, imperava o
nevoeiro; não apenas o físico, mas também um outro, um nevoeiro de palavras. As
pessoas não manifestavam as suas emoções. Na verdade, quase nem sequer falavam.
As conversas nunca iam direito ao assunto. Contornavam-no, obedecendo a códigos
e eufemismos. E a certas coisas não podias sequer aludir. Eram os vestígios da
era vitoriana, retratados de modo brilhante em certos filmes a preto e branco
de inícios dos anos 60 – Sábado à Noite, Domingo de Manhã; Jogador
profissional. A própria vida era a preto e branco; o Technicolor vinha ao virar
da esquina, mas em 1959 ainda não tinha chegado. Não tenho dúvida de que o que
as pessoas realmente querem é tocar o coração umas das outras. É para isso que
serve a música. Se não o podes dizer, canta-o. Ouçam as canções da altura. Tão
pungentes e românticas, enquanto tentam dizer o que não é permitido sequer em
papel. O tempo melhorou, são sete e meia da tarde, o vento já se foi, P.S.
Amo-te.
A
Doris era diferente. Era uma pessoa muito musical, como o Gus. No fim da
guerra, entre os três e os cinco anos, ouvi Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Big
Bill Broonzy, Louis Armstrong. E aquela música falava-me, todos os dias a ouvia
porque era o que a minha mãe punha a tocar. É provável que eu lá tivesse
chegado mesmo por outras vias, mas a Doris ensinou-me a passear os ouvidos pela
zona negra da cidade, sem sequer dar conta disso. Sabia lá eu de que cor era a
pele dos músicos: bem podiam ser brancos, pretos ou verdes. Mas se tiveres um
ouvido um nadinha musical, passado algum tempo começas a notar a diferença entre
o Ain’t That a Shame do Pat Boone e o Ain't That a Shame do Fats Domino. Não é que a versão do Pat Boone seja
particularmente má, ele era um óptimo cantor, mas comparada com a naturalidade
da do Fats, soa oca e produzida. A Doris também gostava do que o Gus ouvia. Ele
recomendava-lhe Stéphane Grappelli, o Quinteto do Hot Club do Django Reinhardt –
ah!, o maravilhoso swing daquela guitarra -, Bix Beiderbecke. Ela gostava de um
bom swing. Mais tarde adorou ouvir o grupo do Charli Watts no Ronnie Scott’s.
Keith
Richards em Life
2 comentários:
Belo post!
Viva, Filhote!
O post é uma cortesia de Mr. Keith Richards.
Quando saíu «Life», devorei o livro, praticamente, em duas noites, algo que não me acontecia há muito, muito tempo - 656 páginas na edição portuguesa.
Sabia que tinha de o voltar a ler, calmamente, sem qualquer ponta de sofreguidão e, claro, deparei com coisas que falharam na primeira leitura. Agora está, devidamente, anotado e, volta e meia, irei trazer aqui uns pedaços.
O livro foi uma preciosa ajuda ao que sempre senti: gosto mais de Stones que dos Beatles. Não sabia explicar o porqû. A explicação desse gosto deu-me o Richars fartamente ao longo do livro - ele andou encharcado no âmago da música, concretamente nos blues.
«Há imensos tipos de blues, diz ele a páginas tantas, blues muito leves, blues mais pesados, pantanosos. É nos pantanosos que me situo.»
Ignorante musical que sou, era isto que me faltava. Havia qualquer coisa e eu não sabia o que era.
Keith Richards subiu mais degraus no meu panteão, não pensava ser possível.
E desculpem os entendidos: Os Rolling Stones sempre foram Keith Richards. Jagger um acessório - talvez seja um exagero da minha parte - que se não aparecer não se dá muito pela falta.
Grande abraço
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