De
muita coisa se pode acusar José Saramago.
Mas
uma coisa é bem clara: sempre disse, sempre escreveu o que pensava.
Não
entrava em rodriguinhos, chamava os bois pelos nomes.
Em
3 de Março de 2002 escreveu um artigo no Público em que acusava Israel das
acções criminosas perpetradas contra a população de Gaza.
Nesse
mesmo mês de Março, chefiando uma delegação de oito escritores, enviada ao Médio
Oriente pelo parlamento internacional de escritores, para avaliar o estado da
situação nos territórios ocupados por Israel, comparou os israelitas com os
nazis.
Não
lhe perdoaram a verdade e acusaram-no de cegueira total pois
comparava o incomparável.
Em
Janeiro de 2009, Saramago entendeu que esse texto do Público não envelhecera e inclui-o
no 1º volume de O Caderno.
O
artigo tinha por título Das Pedras de David aos Tanques de Golias.
Hoje,
mantém a mesma actualidade.
E manterá sempre essa actualidade até que Israel deixe de ser o país terrorista, apoiado pelos Estados
Unidos – e não só! – que ao longo dos anos
tem massacrado o povo palestiniano.
Aqui
vai o texto:
Afirmam algumas autoridades em questões bíblicas que o
Primeiro Livro de Samuel foi escrito na época de Salomão, ou no período
imediato, em qualquer caso antes do cativeiro da Babilónia. Outros estudiosos
não menos competentes argumentam que não apenas o Primeiro, mas também o
Segundo Livro, foram redigidos depois do exílio da Babilónia, obedecendo a sua
composição ao que é denominado por estrutura histórico-político-religiosa do
esquema deuteronomista, isto é, sucessivamente, a aliança de Deus com o seu
povo, a infidelidade do povo, o castigo de Deus, a súplica do povo, o perdão de
Deus. Se a venerável escritura vem do tempo de Salomão, poderemos dizer que
sobre ela passaram, até hoje, em números redondos, uns três mil anos. Se o
trabalho dos redactores foi realizado após terem regressado os judeus do
exílio, então haverá que descontar daquele número uns quinhentos anos, mais
mês, menos mês.
Esta preocupação de exactidão temporal tem como único
propósito oferecer à compreensão do leitor a ideia de que a famosa lenda
bíblica do combate (que não chegou a dar-se) entre o pequeno David e o gigante
filisteu Golias, anda a ser mal contada às crianças pelo menos desde há vinte
ou trinta séculos. Ao longo do tempo, as diversas partes interessadas no
assunto elaboraram, com o assentimento acrítico de mais de cem gerações de
crentes, tanto hebreus como cristãos, toda uma enganosa mistificação sobre a
desigualdade de forças que separava dos bestiais quatro metros de altura de
Golias a frágil compleição física do louro e delicado David. Tal desigualdade,
enorme segundo todas as aparências, era compensada, e logo revertida a favor do
israelita, pelo facto de David ser um mocinho astucioso e Golias uma estúpida
massa de carne, tão astucioso aquele que, antes de ir enfrentar-se ao filisteu,
apanhou na margem de um regato que havia por ali perto cinco pedras lisas que
meteu no alforge, tão estúpido o outro que não se apercebeu de que David vinha
armado com uma pistola. Que não era uma pistola, protestarão indignados os
amantes das soberanas verdades míticas, que era simplesmente uma funda, uma
humílima funda de pastor, como já as haviam usado em imemoriais tempos os
servos de Abraão que lhe conduziam e guardavam o gado. Sim, de facto não
parecia uma pistola, não tinha cano, não tinha coronha, não tinha gatilho, não
tinha cartuchos, o que tinha era duas cordas finas e resistentes atadas pelas
pontas a um pequeno pedaço de couro flexível no côncavo do qual a mão experta
de David colocaria a pedra que, à distância, foi lançada, veloz e poderosa como
uma bala, contra a cabeça de Golias, e o derrubou, deixando-o à mercê do fio da
sua própria espada, já empunhada pelo destro fundibulário. Não foi por ser mais
astucioso que o israelita conseguiu matar o filisteu e dar a vitória ao
exército do Deus vivo e de Samuel, foi simplesmente porque levava consigo uma
arma de longo alcance e a soube manejar. A verdade histórica, modesta e nada
imaginativa, contenta-se com ensinar-nos que Golias não teve sequer a
possibilidade de pôr as mãos em cima de David, a verdade mítica, emérita
fabricante de fantasias, anda a embalar-nos há trinta séculos com o conto
maravilhoso do triunfo do pequeno pastor sobre a bestialidade de um guerreiro gigantesco
a quem, afinal, de nada pôde servir o pesado bronze do capacete, da couraça,
das perneiras e do escudo. Tanto quanto estamos autorizados a concluir do
desenvolvimento deste edificante episódio, David, nas muitas batalhas que
fizeram dele rei de Judá e de Jerusalém e estenderam o seu poder até à margem
direita do rio Eufrates, não voltou a usar a funda e as pedras.
Também não as usa agora. Nestes últimos cinquenta anos
cresceram a tal ponto a David as forças e o tamanho que entre ele e o
sobranceiro Golias já não é possível reconhecer qualquer diferença, podendo até
dizer-se, sem ofender a ofuscante claridade dos factos, que se tornou num novo
Golias. David, hoje, é Golias, mas um Golias que deixou de carregar com pesadas
e afinal inúteis armas de bronze. Aquele louro David de antanho sobrevoa de
helicóptero as terras palestinas ocupadas e dispara mísseis contra alvos
inermes, aquele delicado David de outrora tripula os mais poderosos tanques do
mundo e esmaga e rebenta tudo o que encontra na sua frente, aquele lírico David
que cantava loas a Betsabé, encarnado agora na figura gargantuesca de um
criminoso de guerra chamado Ariel Sharon, lança a “poética” mensagem de que
primeiro é necessário esmagar os palestino para depois negociar com o que deles
restar. Em poucas palavras, é nisto que consiste, desde 1948, com ligeiras
variantes meramente tácticas, a estratégia política israelita. Intoxicados pela
ideia messiânica de um Grande Israel que realize finalmente os sonhos
expansionistas do sionismo mais radical; contaminados pela monstruosa e
enraizada “certeza” de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo
eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e
autorizadas, em nome também dos horrores do passado e dos medos de hoje, todas
as acções próprias resultantes de um racismo obsessivo, psicológica e
patologicamente exclusivista; educados e treinados na ideia de que quaisquer
sofrimentos que tenham infligido, inflijam ou venham a infligir aos outros, e
em particular aos palestinos, sempre ficarão abaixo dos que sofreram no
Holocausto, os judeus arranham interminavelmente a sua própria ferida para que
não deixe de sangrar, para torná-la incurável, e mostram-na ao mundo como se
tratasse de uma bandeira. Israel fez suas as terríveis palavras de Jeová
no Deuteronómio: “Minha é a vingança, e eu lhes darei o pago”. Israel quer
que nos sintamos culpados, todos nós, directa ou indirectamente, dos horrores
do Holocausto, Israel quer que renunciemos ao mais elementar juízo crítico e
nos transformemos em dócil eco da sua vontade, Israel quer que
reconheçamos de jure o que para eles é já um exercício de facto:
a impunidade absoluta. Do ponto de vista dos judeus, Israel não poderá nunca
ser submetido a julgamento, uma vez que foi torturado, gaseado e queimado em
Auschwitz. Pergunto-me se esses judeus que morreram nos campos de concentração
nazis, esses que foram trucidados nos pogromes, esses que apodreceram nos
guetos, pergunto-me se essa imensa multidão de infelizes não sentiria vergonha
pelos actos infames que os seus descendentes vêm cometendo. Pergunto-me se o
facto de terem sofrido tanto não seria a melhor causa para não fazerem sofrer
os outros.
As pedras de David mudaram de mãos, agora são os
palestinos que as atiram. Golias está do outro lado, armado e equipado como
nunca se viu soldado algum na história das guerras, salvo, claro está, o amigo
norte-americano. Ah, sim, as horrendas matanças de civis causadas pelos
terroristas suicidas… Horrendas, sim, sem dúvida, condenáveis, sim, sem dúvida,
mas Israel ainda terá muito que aprender se não é capaz de compreender as
razões que podem levar um ser humano a transformar-se numa bomba.
Legenda:
recorte do Diário de Notícias de 29 de Março de 2002
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