terça-feira, 26 de agosto de 2014

UM DIA INVENTADO


Os meus amigos perdem comboios. Adiam viagens, mudam de rota à última hora, apanham boleias inesperadas. Os meus amigos às vezes perdem aviões. Pagam taxas suplementares e multas, pagam ataques de ansiedade. Os despertadores funcionam mal nas casas dos meus amigos.
Juan devia ter chegado a Santa Apolónia às duas da tarde. Lembrei-me disso quando, na livraria que eu e os doentes do ambulatório do Júlio de Matos frequentamos com displicência, vi "Os Dias Inventados" de Luís Filipe Castro Mendes. Lembrei-me de ir esperar Juan ao comboio, lembrei-me que Juan devia conhecer Luís.
Quando Juan telefonou ("Perdi o comboio. Se calhar já não me calha ir") achei normal, mas fiquei a olhar para o livro de Luís que não era meu. O Luís tão embrulhadinho, em cima de uma secretária cheia de lixo, à espera de ninguém. O Luís, o doce poeta, o nosso homem em Budapeste, envolvido no papel "bordeaux" da Castil. O Luís não devia ficar assim fechado com os dias de sol bonitinhos da pátria, em Budapeste outra coisa, outra coisa será. Acabei por roubar o Luís a Juan e foi muito bom.

A firme paixão cega fui atado
e com meus males preenchi cadernos.
eu dava-te os cadernos, enlevado
de paixão: mortas aulas, frios invernos.

Mais tarde vi teu nome no jornal:
fugias do país, Revolução!
Quando depois voltaste a Portugal
não quisestes lembrar-te da paixão

que num mover de olhos acenderas
e me levara a copiar Herberto
para esconder seus versos na carteira
de onde podia ver-te de mais perto.

O amor estava em visita, sem demora.
Alguém chamou por ti e foste embora

Luís Filipe Castro Mendes
"Os Dias Inventados"
Gótica

Ana Sá Lopes em Glória Fácil

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

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