A coisa aconteceu, era Manuel Damásio presidente do Benfica – o pior presidente de sempre, e o Glorioso tem tido muitos… - e sua esposa, Margarida Prieto, afligia-se com os jogadores a benzerem-se, a rezarem por tudo o que era canto do balneário.
A dama disso deu notícia ao esposo, e ambos, ou apenas ela como mandante-mor-do-jet-set, concluíram que seria uma ideia muito catita, a construção de uma capela no antigo Estádio da Luz.
Assim se fez.
Quanto custou não se sabe.
Também não há notícias da frequência da capela, mas sendo a dita católica, não se sabe o que passou com os que acreditam que há mais que um deus, por demasiado grande ser para uma só religião.
A José Cardoso Pires, agnóstico militante, às 6h30, da manhã Deus estava de costas para mim e eu escrevia, que quando estava chateado dizia que a culpa é dos padres, não terá passado despercebido o ridículo da história, e numa crónica, publicada no Público de 26 de Março de 1995, com o seu fino humor, deixou relato:
«Ave, aquilae Dei!» Foi assim, perfilada no clássico e no eterno diante dos televisores, que a comunidade benfiquista de todos os continentes saudou a cristianização do seu clube, que teve lugar há dias na cerimónia inaugural da capela do Estádio da Luz.
Ali, em hora única, universal, a fé clubista ascendeu à fé teológica revestindo de nobreza a soleníssima humildade do significado do acto. E então vimos o presidente em homenagem, aos pés do Senhor: assim como a planície sagrada transluz ao alvorecer dos querubins, assim brilhava ele de comoção «ab imo pectore», banhado em suores ardentes. E vimos o Celebrante de Deus, no branco-ouro das suas vestes, abençoar a verdade desportiva em nome do entendimento dos contrários: desse voto de pureza jamais podereis esquecer-vos, anunciavam os anjos cantadores que pairavam sobre o altar. E por baixo deles, à mão sinistra do presidente das águias cristãs, estava a primeira dama do império, sua esposa; recordemo-la, prestemos-lhe gratidão. Trajava de vermelho qual «papoila saltitante» por sobre as rimas do nosso hino e, voltada para o mundo, de evangelho aberto, lia capítulos e mensagens de promessa e exaltação. Em verdade se diga que, ao ouvi-la na sagração daquele retábulo de família, sentimos a paz sobre as angústias que nos emudeciam (era o dia do confronto com os do Milan em fogo, não o olvideis jamais, ó ímpios!); mas eis que sobre nós desceu a sombra protectora da santíssima bênção e logo o desespero se converteu em glória e a fé se confirmou numa promessa de triunfos que se iriam prolongar para todo o sempre dos sempres dos séculos, ámen.
Se Ruy Belo fosse vivo, ele que, como eu, alinhava com o Benfica, além de escrever futebol clandestino, não deixaria, tenho a certeza, de eternizar este dia de sagração num poema austero e campeador, digno de ser lido «a cappela» como um cântico transcendente. Declamado em moldura de arcanjos por uma alma iluminada, e com o estádio dos campeões em cenário de fundo, que melhor horizonte para te receber, Senhor?
Aceita, pois, aceita-nos. Faz com que a ave renascida, esta águia rubra que agora ganhou outro voo, suba alto e altíssimo, «sem temer as feras/e para lá das muralhas e fronteiras», como ordena San Juan de La Cruz, apóstolo dos poetas-mártires e magnífico universal.
Sim, somos católicos; o catolicismo é «uma religião desportiva», diz uma voz do filme «Palombella Rossa», de Nanni Moretti, perdida num purgatório metafórico da consciência política que o realizador localizou num campeonato de piscina. Para esse personagem, a prática desportiva, como a prática religiosa mais ecuménica não são um frente-a-frente dos bons contra os maus, mas dos bons contra os bons -- todo o «fair» desportivo assenta nisso, toda a humildade cristã vem daí.
Estádio, Igreja, política, as três praças dos mistérios públicos. Nanni Moretti tinha sido certeiro na sua associação. Mas estamos em hora mística, renovadora. Cumpre que falemos de Deus e das águias consagradas e só disso. Voltamos à cerimónia, continuamos presos à capela que se abriu para nós naquela quarta-feira de esperanças como uma caixinha de promessas. Vemo-la no televisor, é como se estivéssemos ainda a vê-la na sua intimidade acolhedora. Discreta, em luz de seda.
Ah sim, naquela altura não duvidávamos: a capela era a antecâmara das vitórias mais ousadas. Absolutamente. De resto, «no Benfica tudo é possível», tinha dito antes o nosso presidente. E nós sabíamos que sim. Que a partir dali Deus iluminaria o nosso irmão Cannigia e lhe daria pernas e argúcia para que usasse a bola em surpresa e confidência; e faria do campo verde um prado de liberdade das águias triunfadoras; e em tudo se voltaria a sentir a confiança no olhar veloz, no voo de presa e nos lances majestosos que tornam inatingíveis os campeões por destino.
Depois foi o fechar da cerimónia. O sinal da cruz sobre o branco final.
«Acta est fabula», alguém disse. E passámos ao estádio das águias onde, soube-se mais tarde, pairava, alheio a tudo, um estranho vento de maldição.
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