sábado, 9 de junho de 2012

BOLAS PR'O PINHAL!


António Lobo Antunes, no Quarto Livro de Crónicas, a dado passo, pede desculpa e diz que vai falar de futebol.
Mas não começa a prosa sem antes colocar, como epígrafe,uma frase do José Cardoso Pires, ouvida mil vezes em conversas: Eu não sou do Benfica, sou do Nené.
Entendi que seria uma excelente bola pr’o pinhal!
Aqui vai:
Acho que deixei de gostar de futebol porque já não há jogadores que me façam feliz. Agora, como dizem os treinadores, é tudo uma questão de profissionalismo, trabalho e paciência: acabaram o improviso, a fantasia, o inesperado, acabou a minha equipa, Costa Pereira, Mário João, Germano, Ângelo, Cavém, Cruz José Augusto, Eusébio, Águas, Coluna e Simões, para quem o jogo não era trabalho nem paciência, era alegria e alma, era o Benfica. O futebol perdeu o humor, a poesia, o prazer. Simões voltava atrás para driblar outra vez. Germano e Águas possuíam uma elegância irrepetível. Ângelo, como o poeta Maiakowski, só tinha coração. Coluna foi uma equipa inteira: não jogava futebol, criava futebol, introduziu nele o poder da inteligência e descobriu o que não existe: perfeição. Conta-se que um treinador
   (ainda não lhes chamavam técnicos)
   Dizia, antes da equipa entrar, tu fazes isto, tu fazes aquilo, tu fazes aqueloutro, e depois, para Coluna
   - Tu fazes o que quiseres
   E Coluna fazia, de facto, o que queria: punha uma equipa inteira a ganhar. Otto Glória, que sabia de bola, afirmou, mais de um ocasião, nunca ter encontrado ninguém como Coluna. Se voltasse ao Benfica eu voltava ao estádio, porque com Coluna em campo, acabavam os jogadores burocratas, funcionários, escrevendo memorandos, copiando minutas, distribuindo circulares. O que vejo agora, nos raros momentos em que espreito a televisão, são funcionários. Escrupulosos, obedientes, chatos. Uma espécie de perfeição negativa. Uma monotonia de repartição. Paulo Mendes Campos, poeta brasileiro muito do meu afecto, escreve que Ari Barroso, o grande comentador, implicava com o futebol de Garrincha. Dou-lhe a palavra: “Ari transmitiu na têvê um jogo do Botafogo e dizia pausado: Garrincha com a bola. Vai driblar. É claro. Vai driblar de novo. Vai perder a bola. Olha ali, um saçarico para cá, outro para lá. Garrincha passa pelo adversário. Vai perder. Porque ele não centra logo? Claro que vai perder. Gol de garrincha.” E acrescenta: “ a última frase veio seca e mal humorada: também o Ari foi driblado na tribuna”. Ora é precisamente isto que eu peço ao futebol: o improviso, o inesperado, a falta de lógica, a maluquice, o génio. Que me driblem. Que me enervem. Que me surpreendam. Claro que continuam a nascer jogadores assim: só que os técnicos, a direcção, os agentes, os transformam em roibots previsíveis. O único jogador imprevisível que vi ultimamente chama-se Ronaldinho e joga no Barcelona. Portugueses não alcanço um único:
Figo, que parece ser
   (juram)
   Do que aqui há de melhor não passa de um óptimo amanuenese. Cumpridor. E eu não gosto de jogadores cumpridores. Não me espanta, não faz milagres: não executa. É um profissional sério. E, meu Deus, estou cansado de profissionais sérios. Quero é que inventem no campo o que Filipe II pediu ao arquitecto do Escorial: “Façamos qualquer coisa que o mundo diga de nós que fomos loucos.” O bom senso, em desporto, não me interessa um chavo: só me interessa que me deixem de boca aberta, que me apaixonem, que delirem: “um saçarico para cá outro para lá. Claro que vai perder. Gol de Garrincha”. Mas, como, se agora o herói é o técnico? Mas como, se as virtudes são o trabalho e a paciência? De modo que não vejo. Aborrece-me. E os termos? “linhas de passe”, “pressão alta”, “armar a equipa”. O improviso tolhido, as “jogadas de laboratório”. Vou a um estádio para perder a cabeça, não para olhar ao microscópio. E portanto deixei de gostar de futebol: não me faz feliz. Quem me faria feliz era o treinador de uma equipa de província, há muitos anos: o time todo equipadinho, pronto para entrar em campo, e ele traçava no quadro preto dos esquemas tácticos uma cruz a giz, enorme, de canto a canto, após o que se voltava para os rapazes num berro que estremecia a cabine:
   - Não há tácticas nem meias tácticas: o que é preciso é fritá-los.
E ora aqui está a única classe de técnicos que aceito:
- O que é preciso é fritá-los.
Garrincha fritava, Coluna fritava, Águas fritava, Eusébio fritava, o Benfica fritava. Os amanuenses não fritam: repetem o que o técnico manda. Não pensam: reproduzem. Não criam: copiam. Pobre Benfica, pobre futebol, pobre de mim. Quando acabarem os técnicos e regressarem os eufóricos que entram de calções a mandar brasa, sem trabalho nem paciência nem pressão alta nem linhas de passe, eu volto. De cachecol, bandeira e barrete, a abraçar desconhecidos na bancada, e torno para casa aos saçaricos porque fui eu, também, que fiz o gol. Escrevo gol como Paulo Mendes Campos. Em homenagem por ter chamado a Didi coisa metal. No tempo em que o guarda-redes era um solitário sob três paus, e vinte doidos me arrebatavam. Deus seria meu amigo, e vai sendo tempo de mostrar que é meu amigo, se fizesse Coluna nascer outra vez.

Legenda: Mário Coluna, capitão da Selecção Nacional, Mundial de 1966.