Por mero e feliz acaso fui dar, no site da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com uma carta, inédita, de Jorge de Sena, dirigida a José Saramago, na altura com responsabilidades editorais na Estúdios Cor.
José Saramago sempre entendeu que para que se possa conhecer melhor a obra de um escritor, é necessário publicar a correspondência trocada com os seus pares.
Saramago vai mais longe, e na longa conversa que manteve com João Céu e Silva, diz:
Tenho milhares de cartas e costumo dizer que a obra completa de um escritor só estará realmente completa publicando-se uma selecção das cartas dos leitores porque – fala-se tanto da teoria da recepção – é naquelas cartas que se vê realmente o que é a recepção. Em casa devemos ter umas duas mil cartas de leitores que é preciso classificar e ordenar.
Já existe publicada, pela Editorial Caminho, a importantíssima correspondência que, também como responsável literário da Estúdios Cor, manteve com José Rodrigues Migueis, durante o seu exílio nos Estados Unidos.
Urgente, e obrigatório, será a publicação da correspondência que José Saramago manteve com Jorge de Sena.
Assis, 18/5/961
Meu caríssimo Saramago
A sua carta de 10, que levou cinco dias (!) a chegar cá, não me acusa ainda a recepção do original de Metamorfoses, que lhe enviei. Mas, embora não recorde ao certo a data, não há provavelmente demora ou extravio, mas apenas desencontro.
Ontem, os jornais brasileiros noticiavam a concessão do prémio CCB (1) à Fernanda Botelho, o que eu esperava, desde que, junto, no mesmo correio, com aquela sua carta, me veio um recorte do D. de Lisboa (2) (ou coisa parecida), em que havia uma longa lista indiscreta com os nomes dos mais eminentes concorredores. Quero crer que meu cunhado (3) e o Dionísio (4) terão votado em mim; e que o espírito de corpo, em mistura, da Faculdade de Letras e da velha “Távola”(5), tenha, nas pessoas do David (6) (do qual o mesmo correio me trouxe uma obrinha sobre o Teixeira Gomes, com maviosíssima dedicatória) e do Jacinto (7), votado na Botelho que, se bem me lembro, já haviam querido premiar contra o Migueis (8). Claro que os interesses da Bertrand, a que todos mais ou menos se encontram ligados, fez o resto, já que o Simões (9) votaria no diabo, e não no demónio em andanças (10)... Agradam-me, porém, duas ou três coisas: 1º – eu não concorri, mas a editorial...; 2º havia, na lista, o Régio, e outros (que eu não considero muito, mas são “eminentes”) como o Redol, o Abelaira, o Urbano, também premiáveis; 3o – a concessão do prémio à Botelho, notoriamente neutra ou fascistoide, mas pelo menos autora de uma literatura castrada do ponto de vista ético-político, é manifestamente uma “prudência”, uma subserviência, não digo à ordem estabelecida, mas ao não incomodarem-na. Enfim, não me lamento, porque o prémio sempre eu achei que o não ganhava; e não vos culpo: porque achei legítimo concorrer e não me opuz. Do ponto de vista financeiro, os cincoenta contos, para quem devia em Lisboa, ainda, mais do que isso e em requerência de pagamento urgente, sem saber onde há-de ir buscá-lo, esses trinta (cincoenta, não é?) contos, assim passados por diante do nariz, são um rude golpe. Do ponto de vista da minha situação aqui também o são, porque eram – embora eu não acredite em prémios – um acréscimo de prestígio entre os que acreditam neles; e, para os meus inimigos, é um farto motivo de goso. Mas não cuidemos mais desta história toda, ainda que eu fique, curiosamente, à espera dos seus comentários póstumos. E, se não fosse poder parecer uma “chantagem” moral, eu pediria a VV., sobre as Metamorfoses, um adiantamento; e quem diz sobre estas diz sobre uma tradução que VV poderiam dar (do francês) para minha Mulher fazer, que eu não tenho tempo. O que são as traduções dela pode ver-se nos livros que traduziu (assinando Freitas Leça): O Crime dos Justos e Adeline Venicien, do Chamson – por exemplo (Livros do Brasil), – e também Le Grand Ecart, do Cocteau, e O Ouro, do Cendrars, cujas traduções acho, com serem difíceis, perfeitas. E Os Nossos avós Gauleses (Portugália) – cujas provas, no nosso mútuo acordo, eu li, como ela lê as daquilo que eu publico.
Gostei muitíssimo da sua carta (e obrigado pela diligência junto desse imarcessível Amaro (11), das melhores que tenho consoladamente recebido de V. Como sempre são aquela discreta amizade, uma desencantada e sã amargura, o humor de quem sabe que o riso nem todos o merecem; e, por trás de tudo, um bom senso e um equilíbrio que lhe invejo sinceramente, quando os meus me custam (e a V. também, quem sabe) olímpicos, tanto ranger de dentes... Quanto à imodéstia, meu caro, eu sempre achei, e acho, a modéstia a menos legítima das virtudes.
Se eu for, como pretendo, e insisto, para Araraquara (apesar da “côrte” contraditória e interesseira que parece esboçar-se aqui, e foi ao ponto de o meu Director rebaixar-se a pedir-me para vir jantar a minha casa, aonde não o convidáramos mais, para conversar comigo, o que será na próxima semana), não me parece que as coisas possam repetir-se, além do normal que V. tão bem descreve. Eu sou, humanamente, a mais desencantada das pessoas (quase sempre, é certo, sem a sã amargura acima referida) – e não impunemente se é demitido aos 18 anos do mais alto sonho da sua vida (12), já descrente então da vida de família, para percorrer depois os submundos da miséria, e ter sido, durante anos, tropa, funcionário público, político, homem de letras, na aquisição de uma experiência que me dará contos e poemas até ao fim da vida. A cátedra e, além da cátedra, a ilusão de renovação pedagógica autêntica que era Assis, foram, suponho eu, uma última metamorfose minha, em que era natural que eu entrasse impante e acreditando. Ter um “status” universitário e uma posição preponderante nesse outro mundo – eis sonhos que eu não realizara ainda. Naturais, pois, a ilusão e a desilusão, que não poderão repetir-se já para Araraquara nenhuma. Aí, como nas mais cátedras que eu venha a aquecer ou não, terei os desgostos e as arrelias que temos em tudo, maiores ou menores. Mas, como sou incorrigível no afecto desinteressado com que me dedico a tudo (e 15 anos de funcionalismo (13) não puderam corrigir-me), é possível que eu, no fundo de ingenuidades que me salva do tanto de horrível (e também de bom) que a vida tem me dado, ainda venha a ter, mais que arrelias, dores. Neste momento, meu caro, desconfiado com o longo silêncio do Conselho Universitário do Rio (14), eu já espero, naquela divisão entre indignação reservada e resignação risonha, que é a minha, eu já espero mais uma derrota: a de encalhar, num recife burocrático qualquer, o meu processo de doutoramento. Consolo-me, já pensando que, afinal, as derrotas, como a rude franqueza com que tenho incansavelmente denunciado tantas pessoas e coisas (aqueles pavões e perus, de que V. fala), cortando-me acessos e integrações “corporativas”, pondo-me à margem, me libertam, na medida em que me livram de silêncios, de concessões tácitas, de arregimentações quaisquer. Sempre assim foi. A esse último respeito, embora às vezes sonhe com o mundo a meus pés, nunca tive ilusões impróprias: desde que me conheci (e levei algum tempo, porque tinha muito que conhecer), sempre soube que sou daqueles que os Arcanjos da Estrada (que não é metáfora do Pessoa, mas termo das iniciações) têm por obrigação deixar em pelota. E não podem os ditos cujos queixar-se de que eu não tenha, às vezes com precipitada generosidade, facilitado, e justificado até, o trabalho deles.
A minha produção de contos – o que, há tantos anos, aguardava, dentro de mim, tempo que a poesia nunca me requereu – prossegue num ritmo exaustivo. Acabei ante-ontem um, muito longo, que creio, pela amplidão, a complexidade, a violência, das coisas melhores que já escrevi (15). Mas também nisso flutuo numa libertação total que, neste por exemplo, deixa a perder de vista, mero exercício, Os Amantes, no que se refere à descrição e análise da experiência sexual. Escrevo-os como para um mundo ideal onde fosse possível publicar tudo. Além de Os Amantes e de Um Conto Brevíssimo (uma pequena brincadeira séria que vai sair no Estado de São Paulo) tenho já mais cinco contos mais ou menos longos que dariam um volume. Tecnicamente, e o que não é possível ainda, Os Amantes e Um C.B.(16) pertencem a uma reedição das Andanças. Por isso mesmo, de Os Amantes tirei cópias “mimeografadas” para distribuição restrita às pessoas que receberam oferta do volume (claro que lhe vou mandar uma). Os outros contos, com mais dois ou três, serão um volume terrífico, em que a “pátria”, o Exército, a Armada, a Justiça, a Moral, etc. etc. ouvirão o que nunca ouviram. É possível que eu tire, para já e para amostra, cópia de um deles, que lhe mandarei também. Esse volume será, não sei se lhe disse, Os Grão-Capitães. Com ele farei o seguinte: tentarei publicá-lo aqui, o que pode talvez conseguir-se, embora me desagrade, pelo escândalo político e “moral”. Em jornais e revistas... as dimensões e os “contextos” são proibitivos. Mas, em qualquer caso, reservarei os direitos de uma edição vossa, a publicar tão logo seja possível... Para tanto, oportunamente, receberão organizado um original. Tudo isto sem prejuízo de um volume que venha – se esta fornalha de ficção se demorar acesa – a coligir-se de contos publicáveis aí.
Recebi de Nova York e do Migueis, a Escola do Paraiso e o Passageiro. Este li e achei fraco; o romance não tive ainda tempo de o ler, mas emprestei-o, por exemplo, ao Victor Ramos, que o achou uma obra-prima. Não sei se VV mandam ao Migueis as vossas edições, eu, desorientado entre as ofertas de tanta obra sucessiva, creio que lho não ofereci. Poderia V. mandar-lhe, com a dedicatória que junto envio, um exemplar das Andanças? Muito obrigado, desde já.
Quanto ao Sr. Crippa (17), manda-se o livro desta vez, e logo vemos se também eu devo, como o Miguéis, cortar-lhe a coleta.
E, para a colecção de ensaios, e ainda bem que lhe agradou a ideia, cá estou gratamente às ordens.
Esta já vai longuíssima, mas ainda quero comentar essa de eu me guardar para o regresso... Será que eu regressarei alguma vez? Sem dúvida que, aqui entre nós, o Brasil, com todas as suas vantagens, é pior que Portugal, com todos os seus defeitos. Quando e se as coisas mudarem, as saudades que tenho da minha casa e dos meus amigos (e também o patriotismo de lágrima ao canto do olho) funcionarão activamente. Mas, meu caro, dentro das premissas que V. lucidamente expôs, de as cátedras e os lugares serem para os outros (que terão sobre mim a vantagem da minha ausência), com que hei-de dar de comer aos meus filhos? Muito provavelmente, eles voltarão, e eu gostaria que voltassem... Mas V. vê-me, a mim, depois destas aventuras catedralícias, voltado a engenheiro de 3ª da Junta Autónoma das Estradas? Com, para mais, uma viagem vertiginosa a quase-ministro (18)?... E, no Portugal que se avizinha, mesmo que eu fosse um glorioso mixto de Victor Hugo e Balzac, ninguém vai poder viver das letras... – que, aliás, não viveram delas. Talvez eu acabe na China.
Dê as minhas melhores lembranças ao Canhão e ao Correia (19)]. Mande-me notícias do Nataniel (20). E receba o grande, saudoso e grato abraço do seu muito amigo
Ontem, os jornais brasileiros noticiavam a concessão do prémio CCB (1) à Fernanda Botelho, o que eu esperava, desde que, junto, no mesmo correio, com aquela sua carta, me veio um recorte do D. de Lisboa (2) (ou coisa parecida), em que havia uma longa lista indiscreta com os nomes dos mais eminentes concorredores. Quero crer que meu cunhado (3) e o Dionísio (4) terão votado em mim; e que o espírito de corpo, em mistura, da Faculdade de Letras e da velha “Távola”(5), tenha, nas pessoas do David (6) (do qual o mesmo correio me trouxe uma obrinha sobre o Teixeira Gomes, com maviosíssima dedicatória) e do Jacinto (7), votado na Botelho que, se bem me lembro, já haviam querido premiar contra o Migueis (8). Claro que os interesses da Bertrand, a que todos mais ou menos se encontram ligados, fez o resto, já que o Simões (9) votaria no diabo, e não no demónio em andanças (10)... Agradam-me, porém, duas ou três coisas: 1º – eu não concorri, mas a editorial...; 2º havia, na lista, o Régio, e outros (que eu não considero muito, mas são “eminentes”) como o Redol, o Abelaira, o Urbano, também premiáveis; 3o – a concessão do prémio à Botelho, notoriamente neutra ou fascistoide, mas pelo menos autora de uma literatura castrada do ponto de vista ético-político, é manifestamente uma “prudência”, uma subserviência, não digo à ordem estabelecida, mas ao não incomodarem-na. Enfim, não me lamento, porque o prémio sempre eu achei que o não ganhava; e não vos culpo: porque achei legítimo concorrer e não me opuz. Do ponto de vista financeiro, os cincoenta contos, para quem devia em Lisboa, ainda, mais do que isso e em requerência de pagamento urgente, sem saber onde há-de ir buscá-lo, esses trinta (cincoenta, não é?) contos, assim passados por diante do nariz, são um rude golpe. Do ponto de vista da minha situação aqui também o são, porque eram – embora eu não acredite em prémios – um acréscimo de prestígio entre os que acreditam neles; e, para os meus inimigos, é um farto motivo de goso. Mas não cuidemos mais desta história toda, ainda que eu fique, curiosamente, à espera dos seus comentários póstumos. E, se não fosse poder parecer uma “chantagem” moral, eu pediria a VV., sobre as Metamorfoses, um adiantamento; e quem diz sobre estas diz sobre uma tradução que VV poderiam dar (do francês) para minha Mulher fazer, que eu não tenho tempo. O que são as traduções dela pode ver-se nos livros que traduziu (assinando Freitas Leça): O Crime dos Justos e Adeline Venicien, do Chamson – por exemplo (Livros do Brasil), – e também Le Grand Ecart, do Cocteau, e O Ouro, do Cendrars, cujas traduções acho, com serem difíceis, perfeitas. E Os Nossos avós Gauleses (Portugália) – cujas provas, no nosso mútuo acordo, eu li, como ela lê as daquilo que eu publico.
Gostei muitíssimo da sua carta (e obrigado pela diligência junto desse imarcessível Amaro (11), das melhores que tenho consoladamente recebido de V. Como sempre são aquela discreta amizade, uma desencantada e sã amargura, o humor de quem sabe que o riso nem todos o merecem; e, por trás de tudo, um bom senso e um equilíbrio que lhe invejo sinceramente, quando os meus me custam (e a V. também, quem sabe) olímpicos, tanto ranger de dentes... Quanto à imodéstia, meu caro, eu sempre achei, e acho, a modéstia a menos legítima das virtudes.
Se eu for, como pretendo, e insisto, para Araraquara (apesar da “côrte” contraditória e interesseira que parece esboçar-se aqui, e foi ao ponto de o meu Director rebaixar-se a pedir-me para vir jantar a minha casa, aonde não o convidáramos mais, para conversar comigo, o que será na próxima semana), não me parece que as coisas possam repetir-se, além do normal que V. tão bem descreve. Eu sou, humanamente, a mais desencantada das pessoas (quase sempre, é certo, sem a sã amargura acima referida) – e não impunemente se é demitido aos 18 anos do mais alto sonho da sua vida (12), já descrente então da vida de família, para percorrer depois os submundos da miséria, e ter sido, durante anos, tropa, funcionário público, político, homem de letras, na aquisição de uma experiência que me dará contos e poemas até ao fim da vida. A cátedra e, além da cátedra, a ilusão de renovação pedagógica autêntica que era Assis, foram, suponho eu, uma última metamorfose minha, em que era natural que eu entrasse impante e acreditando. Ter um “status” universitário e uma posição preponderante nesse outro mundo – eis sonhos que eu não realizara ainda. Naturais, pois, a ilusão e a desilusão, que não poderão repetir-se já para Araraquara nenhuma. Aí, como nas mais cátedras que eu venha a aquecer ou não, terei os desgostos e as arrelias que temos em tudo, maiores ou menores. Mas, como sou incorrigível no afecto desinteressado com que me dedico a tudo (e 15 anos de funcionalismo (13) não puderam corrigir-me), é possível que eu, no fundo de ingenuidades que me salva do tanto de horrível (e também de bom) que a vida tem me dado, ainda venha a ter, mais que arrelias, dores. Neste momento, meu caro, desconfiado com o longo silêncio do Conselho Universitário do Rio (14), eu já espero, naquela divisão entre indignação reservada e resignação risonha, que é a minha, eu já espero mais uma derrota: a de encalhar, num recife burocrático qualquer, o meu processo de doutoramento. Consolo-me, já pensando que, afinal, as derrotas, como a rude franqueza com que tenho incansavelmente denunciado tantas pessoas e coisas (aqueles pavões e perus, de que V. fala), cortando-me acessos e integrações “corporativas”, pondo-me à margem, me libertam, na medida em que me livram de silêncios, de concessões tácitas, de arregimentações quaisquer. Sempre assim foi. A esse último respeito, embora às vezes sonhe com o mundo a meus pés, nunca tive ilusões impróprias: desde que me conheci (e levei algum tempo, porque tinha muito que conhecer), sempre soube que sou daqueles que os Arcanjos da Estrada (que não é metáfora do Pessoa, mas termo das iniciações) têm por obrigação deixar em pelota. E não podem os ditos cujos queixar-se de que eu não tenha, às vezes com precipitada generosidade, facilitado, e justificado até, o trabalho deles.
A minha produção de contos – o que, há tantos anos, aguardava, dentro de mim, tempo que a poesia nunca me requereu – prossegue num ritmo exaustivo. Acabei ante-ontem um, muito longo, que creio, pela amplidão, a complexidade, a violência, das coisas melhores que já escrevi (15). Mas também nisso flutuo numa libertação total que, neste por exemplo, deixa a perder de vista, mero exercício, Os Amantes, no que se refere à descrição e análise da experiência sexual. Escrevo-os como para um mundo ideal onde fosse possível publicar tudo. Além de Os Amantes e de Um Conto Brevíssimo (uma pequena brincadeira séria que vai sair no Estado de São Paulo) tenho já mais cinco contos mais ou menos longos que dariam um volume. Tecnicamente, e o que não é possível ainda, Os Amantes e Um C.B.(16) pertencem a uma reedição das Andanças. Por isso mesmo, de Os Amantes tirei cópias “mimeografadas” para distribuição restrita às pessoas que receberam oferta do volume (claro que lhe vou mandar uma). Os outros contos, com mais dois ou três, serão um volume terrífico, em que a “pátria”, o Exército, a Armada, a Justiça, a Moral, etc. etc. ouvirão o que nunca ouviram. É possível que eu tire, para já e para amostra, cópia de um deles, que lhe mandarei também. Esse volume será, não sei se lhe disse, Os Grão-Capitães. Com ele farei o seguinte: tentarei publicá-lo aqui, o que pode talvez conseguir-se, embora me desagrade, pelo escândalo político e “moral”. Em jornais e revistas... as dimensões e os “contextos” são proibitivos. Mas, em qualquer caso, reservarei os direitos de uma edição vossa, a publicar tão logo seja possível... Para tanto, oportunamente, receberão organizado um original. Tudo isto sem prejuízo de um volume que venha – se esta fornalha de ficção se demorar acesa – a coligir-se de contos publicáveis aí.
Recebi de Nova York e do Migueis, a Escola do Paraiso e o Passageiro. Este li e achei fraco; o romance não tive ainda tempo de o ler, mas emprestei-o, por exemplo, ao Victor Ramos, que o achou uma obra-prima. Não sei se VV mandam ao Migueis as vossas edições, eu, desorientado entre as ofertas de tanta obra sucessiva, creio que lho não ofereci. Poderia V. mandar-lhe, com a dedicatória que junto envio, um exemplar das Andanças? Muito obrigado, desde já.
Quanto ao Sr. Crippa (17), manda-se o livro desta vez, e logo vemos se também eu devo, como o Miguéis, cortar-lhe a coleta.
E, para a colecção de ensaios, e ainda bem que lhe agradou a ideia, cá estou gratamente às ordens.
Esta já vai longuíssima, mas ainda quero comentar essa de eu me guardar para o regresso... Será que eu regressarei alguma vez? Sem dúvida que, aqui entre nós, o Brasil, com todas as suas vantagens, é pior que Portugal, com todos os seus defeitos. Quando e se as coisas mudarem, as saudades que tenho da minha casa e dos meus amigos (e também o patriotismo de lágrima ao canto do olho) funcionarão activamente. Mas, meu caro, dentro das premissas que V. lucidamente expôs, de as cátedras e os lugares serem para os outros (que terão sobre mim a vantagem da minha ausência), com que hei-de dar de comer aos meus filhos? Muito provavelmente, eles voltarão, e eu gostaria que voltassem... Mas V. vê-me, a mim, depois destas aventuras catedralícias, voltado a engenheiro de 3ª da Junta Autónoma das Estradas? Com, para mais, uma viagem vertiginosa a quase-ministro (18)?... E, no Portugal que se avizinha, mesmo que eu fosse um glorioso mixto de Victor Hugo e Balzac, ninguém vai poder viver das letras... – que, aliás, não viveram delas. Talvez eu acabe na China.
Dê as minhas melhores lembranças ao Canhão e ao Correia (19)]. Mande-me notícias do Nataniel (20). E receba o grande, saudoso e grato abraço do seu muito amigo
Jorge de Sena
(1) Prêmio Camilo Castelo Branco – foi criado pela extinta Sociedade Portuguesa de Escritores. Não confundir com o ainda hoje existente "Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco", instituído em 1991 pela Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão e APE-Associação Portuguesa de Escritores.
(2) Jornal Diário de Lisboa
(3) Óscar Lopes, membro do júri
(4) Mário Dionísio, membro do júri
(5) Távola Redonda, revista literária surgida em janeiro de 1950, durou até julho de 1954. David Mourão-Ferreira foi um de seus fundadores.
(6) David Mourão-Ferreira, membro do júri
(7) Jacinto do Prado Coelho, membro do júri
(8) José Rodrigues Miguéis, vencedor do Prêmio Camilo Castelo Branco de 1959, com o livro Léah e outras histórias (Contos e Novelas), editado em 1958 pela mesma Editorial Estúdios Cor onde atuava Saramago.
(9) João Gaspar Simões, membro do júri
(10) Andanças do Demónio era o livro de contos de Sena que concorria ao mencionado prêmio
(11) Luís Amaro, intelectual modestíssimo, amigo de Sena e de Saramago, foi co-fundador da revista de poesia Árvore (1951) e veio a ter papel decisivo no alto padrão alcançado pela revista Colóquio/Letras (Fundação Calouste Gulbenkian), onde trabalhou anos a fio.
(12) Exclusão da Armada em 1938
(13) Referência a seu trabalho na JAE-Junta Autónoma das Estradas
(14) Universidade do Brasil, hoje UFRJ, onde pleiteara seu Doutoramento.
(15) Referência ao conto “A Grã-Canária”, de Os Grão-Capitães, datado de 16/5/61.
(16) “Um Conto Brevíssimo”, que na publicação em livro perdeu o artigo inicial desse título.
(17) Bernardo Crippa – professor italiano que pedira “o volume de contos para criticá-lo na imprensa italiana, e anotá-lo no Dicionário da Literatura Contemporânea” (cf. carta de Sena a Saramago de 30/4/1961)
(18) Sena seria o Ministro das Obras Públicas se o “Golpe da Sé” fosse vitorioso .
(19) Co-diretores, com Saramago, da Editorial Estúdios Cor
(20) Nataniel Costa – professor, tradutor, escritor e diplomata – convidou Saramago a ocupar seu lugar de “diretor literário” na Editorial Estúdios Cor quando teve de se ausentar devido à carreira diplomática
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