A Casa Suspensa
Maria Ondina
Braga
Colecção
Fantástico nº 1
Relógio d’Água
Editores, Lisboa, Dezembro de 1982
Isa: Esta minha má consciência, esta sensação, como
diria a minha avó, de andar de fora da graça de deus, traz-me à ideia, mal
comparado, o caso daquela mulher que encontrei há meia dúzia de anos numa
estação de caminho de ferro da linha do norte. Obrigaram-nos a desembarcar ali
por causa de um descarrilamento na paragem a seguir. Outubro. Na
sala-de-espera, eu, ela, e um homem de queixo no peito a ressonar. Que é dos
outros companheiros? Se calhar juntaram-se e fretaram um táxi até Famalicão, ou
foram a pé. Vivia perto, mas lá pelos caminhos de Cristo àquela hora não se
atrevia, a um lugar desviado. Vou-me informar da demora. Ao regressar, já alguém
acendra a luz sumida do tecto. Baixinha, chupada, grisalha, um olho globoso e
desfocado, a minha parceira de viagem: «Aí vem o de Leixões!» O olho vesgo na
minha direcção ou na do cais? Sempre atrasado, o de Leixões não parava. Às oito
e três quartos, o mercadorias de Matosinhos. O de Espinho, às nove e quinze.
Ainda cá estaremos? O Chefe da estação torcera o nariz: desastre de vulto por
sorte sem vítimas. Erro de agulhas? O agulheiro decerto borracho. O ano
passado, também pela altura das vindimas, morrera atropelado em Gavião um
fogueiro bêbado como um cacho. Filha e viúva de ferroviário, a par de tudo
respeitante a comboios, automotoras, tabelas de chegadas e partidas, vias,
ramais. Inclinou a orelha: «O apito do de Viana: chuva na cama…» Meu Deus, quem
seria o agulheiro? Ia para a rua, não havia santo que lhe valesse.
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