domingo, 24 de janeiro de 2016

UMA CONCHA BURGUESA E ARISTOCRATIZANTE


Parece que é sempre assim, se atendermos ao ar enlevado com que todos olham o céu e proclamam com orgulho: “É isto a Bretanha!” Será. Um tempo intransigentemente brumoso, com a areia ensombrada pela paisagem ininterrupta das nuvens, e as pessoas atravessando invernosamente a praia, embrulhadas em camisolões de malha grossa, “kispos”, “anoraks” e “parkas”, todo um reportório de protecções para o frio cortante e a agressão das marés.
Recordo-me – mas o contexto é radicalmente diferente –dos verões passados em São Martinho do Porto, “um microclima”, como dizia o meu pai, havia sol em todo o lado, e mal nos aproximávamos das Caldas da Rainha víamos uma concentração de nuvens para os lados do Atlântico, e a alternativa era simples, ou as nuvens ficavam todo o dia, ou havia uma ventania que as varria e tornava a praia insuportável. Acordávamos e corríamos a encostar a atesta às janelas, na melancolia de uma chuva miudinha, mas sempre na esperança de que isto vai levantar, e como se sabe ao meio-dia ou carrega ou alivia. São Martinho: poucos lugares portugueses tiveram para mim este peso mágico, dunas de infância em Salir, merendas na praia, castelos de areia, o Catitinha, o homem dos barquilhos, o domingo das regatas, o bilhar à noite, a roleta, as bicicletas da rua dos cafés, o jogo do prego, as excursões colectivas ao cinema para os lugares da frente, os mais baratos, onde não estavam os pais, as idas ao Facho, a descida à Praia da Adraga, o farol e a lenda do navio encalhado, as sestas, a descoberta do amor, os amuos de fim de tarde, os passeios de barco, as leituras no pinhal, a Maria Eduarda, o Artur e os seus estudos de Direito, as discussões políticas, o ir comprar os jornais, os confrontos sarcásticos entre o Benfica e o Sporting, o efeito do 25 de Abril num lugar profundamente reaccionário, os insultos oblíquos, umas caçarolas com bifes e batata fritas que se foram reduzindo e se passaram a chamar “crises” num acto de resistência dos condes e marqueses à política do regime democrático, as conversas e loucuras do Luso Soares, o grupo, o bando, a utopia, a areia nos olhos, a felicidade, o fim do Verão. Mas São Martinho era uma concha burguesa e aristocratizante, um ninho familiar, amável, confortável e doméstico, enquanto Saint-Malo tem uma forma desabrida de nos atrair, é como se passássemos de uma aventura dos cinco para um romance do Sandokan, o tigre da Malásia, e saímos da baía, e afrontamos as ondas, e caminhamos para o mar largo, e deixamos a costa a perder de vista, e sentimo-nos definitivamente abandonados, expostos à inclemência dos céus, para sempre adultos, guiados por estrelas vacilantes, sem bússola nem mapa.

Eduardo Prado Coelho em Tudo o Que Não Escrevi”, 2º Volume

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

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